Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Nunca é fácil julgar os julgadores

Livro 'Tanques e Togas' mostra complexas opções do STF após o golpe de 1964

Fico sempre pensando no que eu teria feito se tivesse vivido em épocas mais conturbadas do que a atual. Se fosse alemão em 1933, por exemplo. Teria apoiado o nazismo? Acho que não. Teria participado de algum movimento de resistência? Gostaria de dizer que sim, mas acho que a resposta seria negativa também.

Nem tudo precisa ser tão extremo, naturalmente. Mais aqui para perto, posso dizer com razoável certeza que não teria apoiado o golpe de 1964, e que tampouco aprovaria os que se entregaram à guerrilha.

Mas estas situações são apenas hipotéticas e, além disso, muito vagas. Se o exemplo vai ficando mais concreto, as opções éticas são mais difíceis —e é ainda mais difícil julgar as atitudes reais de cada pessoa no ponto exato de uma encruzilhada histórica.

Ilustração Coluna Marcelo Coelho por André Stefanini
André Stefanini

Tome-se o caso do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro da Costa, na noite de 31 de março de 1964.

É esse o momento em que começa o excelente “Tanques e Togas - O STF e a Ditadura Militar”, do jornalista Felipe Recondo (Companhia das Letras).

Como defensor da Constituição, um presidente do Supremo deveria, no mínimo, abster-se de qualquer apoio a um movimento militar que derrubava o presidente da República.

Ribeiro da Costa aliou-se, contudo, àqueles que Tancredo Neves xingava de “canalhas, canalhas!” na sessão do Congresso que declarou vaga a Presidência da República.

Alegou-se que João Goulart abandonara o país (na verdade, ele estava no Rio Grande do Sul) e que, portanto, o presidente da Câmara podia assumir o cargo, abrindo as portas para o regime militar.

Segundo conta o livro, em situação análoga, Ribeiro da Costa se pronunciara em favor da legalidade estrita. Em 1955, assegurou no Supremo que o presidente Café Filho, afastado por motivo de saúde, tinha o direito de reassumir o cargo. Naquela crise, o poder militar tinha as simpatias da esquerda.

Em 1964, os militares acabavam com a “baderna comunista” e Ribeiro da Costa não quis defender a legalidade civil.

Vou lendo, e condenando: “golpista... canalha...”. Mas alguns meses e algumas páginas do livro se passam —e minha visão de “mocinho” e “bandido” não se sustenta mais.

O Supremo começa a decidir, com muita habilidade jurídica, contra as prisões arbitrárias do governo militar.

Concede-se um habeas corpus em favor do ex-governador Miguel Arraes, detido pelos generais. A linha-dura resiste a obedecer ao STF; “solta” Arraes, mas prende-o imediatamente em seguida pelo mesmo motivo.

Ribeiro da Costa dá uma tremenda bronca no comandante do Primeiro Exército: “Tenho por intolerável sua interpretação restritiva à soberania do Poder Judiciário. Acate, pois, aquela decisão tal como lhe foi comunicada”.

Era ainda o tempo de Castello Branco: uma ditadura meio envergonhada. Não se tinha tocado em nenhum membro do STF —nem mesmo naqueles nomeados por João Goulart. Os problemas, políticos e jurídicos, dessa situação híbrida ganham narrativa claríssima de Recondo.

Vem o AI-2, que não destitui nenhum ministro do STF, mas aumenta o número dos seus membros, de modo a garantir uma maioria de gente alinhada com a “Revolução”.

Só que não adianta: mesmo nas ditaduras, o fato é que, depois de empossado, o ministro faz o que quer, e não o que se espera dele. Com o AI-5, em 1968, dá-se enfim o massacre: três ministros do STF são cassados, e outros dois renunciam.

“Ah, mas o certo seria todos renunciarem”, penso. Pois bem, houve os que ficaram. E foram fundamentais para salvar das grades (e de mais torturas) algumas vítimas da repressão.

Relativizo, assim, meus heroísmos de poltrona e grandes gestos retrospectivos: ao se fazer o que eu talvez considerasse incorreto, fez-se o certo também...

Eis um dado final, para que se relativizem, ademais, os “certos” e os “errados” no Supremo de hoje. Num momento de coragem contra a ditadura, três ministros do STF deram o “habeas corpus” a estudantes presos por um tribunal militar.

Os estudantes estavam havia cem dias na cadeia. Em sua defesa, argumentou-se que a investigação do caso envolvia 22 réus e 66 testemunhas. Quando terminaria todo esse inquérito? E como manter por tanto tempo esses rapazes em prisão preventiva?

Deu-se um jeito, com argumentações diversas, para acabar com aquele arbítrio ditatorial. Isso foi em 1967. Prisões preventivas longas, hoje em dia, parece que não escandalizam tanta gente —e, no STF, Gilmar Mendes paga o preço de reclamar disso.

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