Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Em meio ao palavrório científico, e por causa dele, arte de 'Os Sertões' resiste

Estilo de Euclides da Cunha desafia até os leitores mais destemidos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Às vezes uma performance é tão boa que dá vontade de rir. Pelo menos, isso acontecia frequentemente comigo quando eu era criança.

Lembro uma situação dessas. Uma senhora, semelhante a tantas outras amigas da família, sentou-se ao piano e, sem preparo nenhum, desembestou numa cavalgada terrificante de escalas e arpejos.

Ilustração
André Stefanini

Foi tão inesperado, tão rápido, tão... impessoal, que resultava cômico; algo como a incorporação de um espírito demoníaco naquela cinquentona.

Mas os espíritos, em geral, tendem a enunciar mensagens e ensinamentos do além. Ali, tratava-se menos de um espírito do que uma máquina —saracoteando na banqueta, com os dedos a disparar um daqueles exercícios em que só uma palavra conta: a palavra “mais”. Mais rápido, mais alto, mais longe, mais, sempre mais, até uma triunfal exaustão do som.

O maquinismo, quando imposto de repente à moleza da matéria viva, sempre faz rir —esta, a lição de Bergson (1859-1941). E, sem dúvida, quanto maior o espanto, melhor.

A Flip deste ano homenageia Euclides da Cunha (1866-1909), um autor cujo estilo desafia os mais destemidos. Há quem recomende ao leitor que vá direto para a terceira parte de “Os Sertões”, quando se narra a luta entre as forças do governo e os rebeldes da aldeia de Canudos.

É que o começo do livro tem fama de ser chatíssimo.

Não acho, mas dá para entender essa reação. Nos primeiros parágrafos de “A Terra”, o leitor já tropeça em “formações geognósticas díspares”. Será apresentado a “massas gnaissegraníticas” e a “camadas horizontais de grés argiloso”, para retornar, algumas linhas depois, a “afloramentos gnáissicos” e, ora vejam, a “rebentos graníticos”.

É tal a acumulação de termos geológicos e palavras difíceis, que reencontro a velha vontade de rir. Não porque o estilo seja ridículo —embora exista uma dose disso também, em consequência do cientificismo e das pretensões da época.

O espanto vem da fluência, do virtuosismo, com que Euclides da Cunha emprega esse vocabulário.

É como se ele estivesse falando a coisa mais simples do mundo —“batatinha quando nasce esparrama pelo chão...”, por exemplo— só que em “outra língua”, a única que ele dominasse. 

Ficaria mais ou menos assim: “Apenas se atesta a erupção pigmoide do tubérculo —o Solanum tuberosum de Lineu—, ei-lo que assoberba, em desapertados tentáculos, a platitude exânime do solo...”.
Seria absurdo, para nossos padrões, dizer que “ficou mais bonito”. Ninguém aceita mais o palavrório; é “de mau gosto”.

Mas a questão do “gosto” não esgota o campo da consideração estética. E existe, indiscutivelmente, um valor estético —ainda que para nós “errado”—nessa forma de escrever.

É admirável, como eu ia dizendo, o aspecto do virtuosismo, da facilidade no emprego dos meios que se têm à disposição.

Há outras coisas, entretanto, para descobrir.

Um traço curioso em Euclides da Cunha é que, com o excesso de polissílabos e palavras técnicas, o que termina se destacando da maçaroca é o termo coloquial, comum.

A gente se perde ao ler, por exemplo, que determinados complexos rochosos “se escalonam em alinhamentos incorretos de menires colossais” ou “lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira”.

Mas aí, no final da frase, vem uma palavra mais “pobre”.

Retomo o fio: “restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira, desabada”. Desabada! É lindo, e comum.

Além disso, há uma espécie de rima entre “abóbada” e “desabada”, como se a primeira palavra nobilitasse a segunda.

Continuo a ler. Depois de “taludes galgados” que “soerguem” pelos “quadrantes” alguma coisa que não sei mais o que é, aprendo que a “série do grés figura-se progredir” rumo ao norte. Até que chega (e este o final da frase) no “Açuruá”.

Todo o aparato do dicionário erudito parece cair no chão. Parou na palavra pobre, topou com esse “Açuruá”.

E não é disso, afinal, que trata o livro inteiro? A complicada elaboração do positivismo republicano deu de cara com uma realidade “intraduzível”, nativa, isolada —a dos seguidores de Antônio Conselheiro.

O “Açuruá” no fim da frase parece se levantar, rebelde, contra o cerco das palavras científicas. Talvez Euclides da Cunha tenha apenas “achado bonito” o jogo das sílabas e dos ritmos da sentença. Mas o seu “ouvido” para a língua brasileira não traía o que se viu, e se sentiu, nos dias de massacre.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.