Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

De zoom em zoom, viramos zumbis que falam para outros zumbis

Videoconferências em série expõem rotina de trabalho sem sentido

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sem problemas de espaço ou de crianças, acabo me dando bem com a quarentena; sempre fui de ficar em casa, ouvindo música e enrolando no computador.

Ainda assim, duvido de quem prevê grandes mudanças no regime de trabalho ou no sistema de educação a partir da pandemia.

Já faz tempo que se adota o home office em algumas áreas de atividade, como a minha, por exemplo. Mas a Covid foi mostrando, na verdade, desvantagens que não se imaginavam antes.

Nas escolas é onde isso se torna mais visível. O aluno de ensino médio ou de faculdade não tem como aproveitar direito as aulas no computador.

Há uma psicologia nisso.

Ilustração da janela de um programa de computador dividida em quatro partes. Em cada uma delas, há uma cabeça azul de pessoa com cabelo curto preto e sem rosto, apenas com espirais no lugar dos olhos.
André Stefanini/Folhapress

Na vida normal, você acorda, toma o café da manhã, demora um tempo até chegar à escola, encontra os colegas, entra na classe, espera o professor tomar controle da situação.

Esse tempo “perdido” envolve uma preparação mental. A cabeça se esvazia, graças à rotina, e mesmo as rápidas conversas e brincadeiras entre os colegas de classe têm um prazo. Depois de cinco, dez ou 15 minutos, cada um faz a pergunta tácita: “Muito bem, e agora?”.

Durante a aula, acontecimentos imprevistos quebram o ritmo da exposição —e mais ajudam do que atrapalham. Uma porta bate; uma conversinha paralela pode suscitar a bronca do professor; alguém pede para ir ao banheiro.

Tudo para, e depois recomeça.

Perde-se tempo com tudo isso? Sim, mas tempo perdido é tempo recuperado. A atenção, interrompida por dois minutos, se renova em seguida, como uma planta que precisa de uma poda de quando em quando.

Pela internet, os acidentes são menores: um problema de microfone, alguém chegando mais tarde na conferência.

A regra, contudo, é tudo processar-se lisamente, na mesma toada, sem tantos solavancos.

As próprias interrupções se dão num mesmo espaço, numa mesma faixa de onda cerebral. Para quem está de fone de ouvido e com os olhos grudados na tela, o transe não se quebra. A pessoa olha e escuta, mas a mente fica em dormência.

É confortável; naturalmente, você pode desligar a câmera e continuar ouvindo a falação enquanto foi à cozinha ou ao banheiro. Mas a interrupção voluntária não tem um valor de surpresa capaz de te deixar mais acordado.

O cinema, que como a tela do computador é em duas dimensões, corrige essa desvantagem pelos movimentos de câmera, pelos cortes, pela mudança de cenário.

Na conferência pelo computador, um zumbi fala para outros zumbis. A aula, a palestra ou o encontro deixam de ser uma ocasião especial, com sua paisagem própria e sua aura no tempo, para se tornarem o preenchimento de um dia, que terá várias outras horas semelhantes.

O mais triste não é que estejamos, todos, nesse estado de semiconsciência, de achatamento espacial, de indiferença pastosa diante dos “conteúdos” que se sucedem.

Reduzidos a uma quantidade fixa de bits, os próprios “conteúdos” perdem valor, porque neles não se fez nenhum investimento psicológico. Em vez de pegar o ônibus ou o carro, em vez de vestir uma roupa adequada, simplesmente liguei o laptop.

A própria atividade, o próprio trabalho, a própria necessidade de uma conferência que passam a ter uma existência suspeita, ou sobrenatural.

Não há dia em que eu não receba convites e anúncios para alguma fala de “especialistas” do mercado financeiro; “webinars” se sucedem para discutir “cenários” pós-Covid. Executivos, consultores, analistas, assessores: desconfio que essa gente passe muito tempo se reunindo inutilmente para passar um ao outro seus “briefings” e encomendar seus próximos relatórios.

Tantos assessores e reunionistas não podem perder o emprego; têm de mostrar serviço. “Zombie managers”, disse o jornalista Matthew Lynn, há algum tempo. Do banco à farmácia, do plano de saúde ao museu, da corretora de imóveis à academia de ginástica, todos se ocupam com videoconferências.

Não há quem não ofe reça “dicas” do que fazer durante a quarentena, não há quem não promova pesquisas de satisfação do cliente, não se reúna para sessões de “planejamento estratégico” ou para rediscutir “programas de sustentabilidade”.

Talvez isso tenha sido o “normal” antes da pandemia. Com o confinamento, isso se torna mais visível. Todos se protegem da contaminação; ao mesmo tempo, prolonga-se uma existência semicomatosa, que é a de um trabalho vazio, mais adequado a mortos-vivos do que a pessoas reais.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.