Com o surgimento de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro, tornou-se frequente lembrar uma frase do marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Nos ambientes de esquerda, pelo menos, a citação vai ficando até cansativa.
Aqui vai. “A crise”, dizia Gramsci, “consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.
Sem dúvida, o populismo de direita que ganhou força depois da crise de 2008 tem tudo para ser chamado de “sintoma mórbido”.
É preciso que um sistema esteja em perturbação profunda para dar apoio a políticos que, em “condições normais”, somente poderiam mobilizar uma parcela mínima de fanáticos e malucos. Mas, de tão repetida, a frase de Gramsci foi ganhando uma aura profética e explicativa que me parece meio exagerada, e começo a ter dúvidas sobre o que de fato pode significar.
Tomei conhecimento dela há cerca de 40 anos, quando apareceu como epígrafe no filme “Don Giovanni”, do marxista Joseph Losey (1909-1984). Tratava-se de uma filmagem bastante convencional da ópera de Mozart, mas alguns toques políticos justificavam a referência gramsciana.
Na visão de Joseph Losey, o nobre dissoluto Don Giovanni seria, sem dúvida, um “sintoma mórbido”, posto entre o “velho” e o “novo”. Ao mesmo tempo em que se vale de seus privilégios de classe, traz consigo —pela própria libertinagem— algo capaz de contestar a ordem vigente, fundamentada em justificativas religiosas.
Se não é plenamente satisfatória, a interpretação se torna, pelo menos, possível —uma vez que, analisando os fatos com grande distância histórica, sabemos o que era “o velho” e o que viria a ser “o novo”.
Na década de 1930, quando Gramsci escreveu a frase, era possível acreditar em coisa semelhante. O velho capitalismo liberal e seu regime político estavam, evidentemente, em crise, e o “novo”, para grande parte da esquerda, tinha se anunciado com a vitória dos bolcheviques em 1917.
O processo haveria de se espalhar por todo o mundo; fascismo e nazismo seriam “sintomas mórbidos” enquanto o socialismo não vinha. Encarnavam a superação do puro liberalismo econômico e o surgimento da política de massas; mas faziam isso uma forma delirante, mortífera, perversa, antipopular.
A monstruosidade, a mistura farsesca entre “velho” e “novo”, já se expressava no próprio nome do partido de Hitler, “nacional” e “socialista”.
O alcance e os limites dessa frase de Gramsci se revelam, acho, a partir desse contexto. De um lado, o diagnóstico era preciso: o liberalismo econômico e as repúblicas parlamentares anteriores à crise de 1929 eram “o velho” e já tinham “morrido”.
O fascismo nascera dessa crise de dominação política, desse colapso da velha ideologia do liberalismo econômico.
Até aí, é difícil discordar.
Mas o que dizer daquele “novo”, que segundo Gramsci ainda não “podia nascer”? Com a derrota de Hitler e Mussolini, o regime que se instituiu nos países desenvolvidos foi o de um capitalismo mais avançado socialmente, o sistema do “welfare state”.
Depois de 30 ou 40 anos, a social-democracia tinha “envelhecido”, e os países capitalistas entraram numa “nova” fase, a da destruição neoliberal. Vemos agora, com a crise de 2008, que o neoliberalismo ficou “velho”; já está morrendo.
O problema, para mim, é que todas essas transformações, para o bem ou para o mal, se fazem dentro do sistema capitalista.
O “novo” mais radical, aquele da perspectiva de Gramsci, ficou para as calendas. O primeiro grande “sintoma mórbido” apareceu em 1852, com a tomada de poder de Napoleão 3º na França.
Foi a primeira “crise de hegemonia”, e a análise de Marx a esse respeito é retomada cada vez que o autoritarismo e o populismo de direita mostram as garras.
Difícil chamar um fenômeno tão comum de “sintoma mórbido”, típico de uma era de “transição”. Transição para onde?
O novo não é uma manhã ensolarada, uma primavera que uma hora “nasce”.
E aberrações como Trump e Bolsonaro não são monstruosidades genéticas do processo histórico, causadas por acidentes abortivos.
São mais parecidos com a mutação nova de um vírus, que causa uma pandemia política em condições precisas, e que exige, como sempre, um enorme esforço de vacinação.
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