Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Com meu lado masculino à solta, faço da limpeza um ato de destruição

Paninhos e esponjas não me atraem, prefiro a versão armamentista e impiedosa de tubos metálicos e jatos letais

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Não sei se já fizeram a pesquisa, mas seria interessante saber o quanto a "classe média" resistiu ou está resistindo à falta de empregadas domésticas. Pelo que vejo, com os cuidados imprescindíveis, muitas funcionárias já voltaram ao trabalho na minha vizinhança.

Tenho me segurado bem —desde que me internei na quarentena, recorri só duas vezes ao serviço delas.

É verdade que sou meio porcão. Aprecio a troca de lençóis uma vez por semana; não há nada como entrar numa cama passadinha e esticada. Mas também não me dou mal com a mesma roupa de cama, engruvinhada ao longo de meses.

Dane-se! Uma hora cuido disso! Isto é, se eu soubesse como.

Camisa passada? Para quê? Se eu não saio de casa... com o uso ao longo do dia, aliás, ela vai entrando no eixo —e a minha barriga, que cresce num sedentarismo nem tão forçado assim, estica razoavelmente os amassados do tecido.

Ilustração para a coluna do Marcelo Coelho de 14-10-2020 (Ilustrada)
André Stefanini

Estranhos fenômenos, contudo, começam a surgir na falta de empregadas.

Uso xampu anticaspa como todo mundo, mas a cabeça começou a coçar mais. Imagino que o acúmulo de ácaros no travesseiro tenha a ver com isso.

Surgem novos interesses, então, nesta minha fase doméstica. Já encomendei, por exemplo, um spray antiácaros: não sabia da existência de tal produto.

Mais do que nunca, aliás, tornei-me fã dos sprays. Para que comprar álcool em gel, penso, quando os há acionáveis a um só toque de gatilho?

O mundo dos paninhos e das esponjas não me atrai. Prefiro a versão armamentista, impiedosa e masculina dos tubos metálicos e dos jatos letais. Nada de carinho, capricho, paciência; as fadas invisíveis do lar são substituídas pelo Rambo do banheiro, o Hulk da área de serviço.

Produtos! Produtos! Por princípio, escolho os Mister Músculo, os Diabos Verdes, os tufões de cloro, as espumas de soda cáustica. Não gosto dos que são líquidos demais, os que hidratam as mãos, os que têm a suavidade do leite de amêndoa e do óleo de coco.

Prefiro as maçarocas abrasivas, devoradoras de manchas, fulminantes, que dispensam esfregação: a ejaculação precoce da assepsia.

Apesar do nome simpático, o Tuff Stuff é um spray nessa linha. Aperto um pouco (mas o melhor é apertar muito) e o tubo cospe uma nuvem sólida, seca, quase viva, faminta de restos de geleia, cadáveres de inseto, migalhas e melecas.

A vida num espaço fechado me faz distinguir entre várias espécies de sujeira. Dividem-se em duas grandes categorias: as que eu percebo e as que eu não percebo.

O pó que se acumula no chão, por exemplo, conta com minha indulgência. Aspirador, eu? Por que dar à minha casa mais atenções do que as dedicadas ao meu carro? Mando lavar a cada seis meses —isso, quando a data não coincide com a revisão; aí sei que será devolvido limpo de todo jeito.

Mas vou percebendo que o pó paulistano não é uma poeirinha qualquer. Acumula-se numa camada oleosa, grudenta. Os pelos do cachorro vão ficando pegajosos. Por mais que o vento entre pela janela, já não se movem os fios dentais que deixei cair no chão.

Aliás, um fenômeno mágico passa a se registrar.

Nenhuma coisa sai do lugar. A calça que joguei em cima dos sapatos continua lá, e já se passaram duas semanas. O jornal esquecido na mesa de jantar, o copo na área de serviço, o garfo ao lado do computador, estão como mortos; ninguém se lembrou de guardá-los.

O olhar se acostuma —até que não.

Ao mesmo tempo que compro novos e potentes produtos de limpeza, sou tomado pela febre de jogar coisas fora. O carregador de celular velho, a faca que já não corta, a caneca promocional que ninguém usa, o prato lascado, o ímã idiota —tudo para o lixo! Hasta la vista!

E aí aparecem, depois de semanas de descaso, sujeiras em que nunca tinha reparado. As digitais pretas na geladeira, o acinzentado na parte de trás da impressora, os grumos no registro lá de cima no banheiro; umidades, bolores, sedimentos: desde quando estavam aqui?

Meu lado masculino se manifesta novamente.

Entrego-me a blitze, ataques concentrados, guerrilhas, em meio ao monte de cadáveres e ruínas de tanta coisa quebrada e largada pelo chão.

Conservar, cuidar, passar paninhos —há em tudo isso carícias e carinhos que ignoro. Antes o escovão que o aspirador, antes o aço que a esponja, antes o lixo que o conserto.

Que trogloditas somos nós, os homens... Vivendo entre o churrasco e o ronco, somos insensíveis à imundície, a menos que esta dê pretexto a atos de destruição.

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