Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Conheça o homem que está na raiz da extinção da privacidade

Livro remonta primórdios das bases de dados superpoderosas que ditam nosso futuro

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Todo intelectual deveria fazer o máximo de esforço para ler qualquer coisa que Elizabeth Kolbert recomende. Mais ainda se ela afirmar que um trabalho resulta de profunda pesquisa e se revela completamente divertido e totalmente aterrorizador.

A penca de adjetivos e advérbios está na capa do livro "The Hank Show", de McKenzie Funk, logo após a descrição sucinta de Kolbert: "Hank Asher talvez seja a pessoa mais importante de que você nunca ouviu falar".

O enigma prossegue no subtítulo: "Como um pintor de paredes, traficante de drogas e informante da DEA construiu a máquina que governa a nossa vida". Mas esta coluna não precisaria de mistério ou recomendação chique para se debruçar sobre o volume, sendo Mac, o autor, um velho conhecido.

Pessoa passando em frente a painéis
Pessoa no MWC (Mobile World Congress) em Barcelona, um dos maiores encontros anuais da indústria de tecnologia - Josep Lago - 1.mar.2022/AFP

De sua pena saiu "Windfall", sobre negócios que lucram com a crise climática. Traduzido no Brasil como "Caiu do Céu" (2016), foi indicado por mim à finada editora Três Estrelas. Mais conflito de interesses: estivemos juntos na classe de 2012 da Knight-Wallace Fellowship da Universidade de Michigan.

Deixar de indicar "The Hank Show", por força desse vínculo pessoal, seria pecado. A história narrada no livro é intrigante sob vários aspectos, e de fato ajuda a elucidar como nos tornamos vítimas consentidas da extinção da privacidade.

Mac escreve que o direito ao esquecimento é um direito fundamental. Esqueça. Isso não é mais possível, nestes tempos em que bases de dados públicas e privadas sobre indivíduos se tornaram devassáveis por algoritmos poderosos, que recolhem e agregam múltiplos dados para traçar um perfil completo de cada pessoa.

Com esses agregadores, empresas, governos, golpistas e políticos ganharam o poder de predizer com razoável grau de confiança o futuro de cada um. Como essas pessoas votarão, se têm maior propensão a ficar doentes, se tornar inadimplentes, cometer crimes, consumir pornografia infantil ou praticar atos terroristas.

Nada disso teria surgido como surgiu sem Hank Asher e sua estranha biografia, que ocupa os primeiros 70% do volume. Hiperativo e genial, fez fortuna na Flórida com táticas agressivas de sua empresa de pintura de condomínios.

Comprou um avião para viajar às Bahamas atrás de pescarias e noitadas. Logo agarrou a oportunidade de usá-lo para ganhar dinheiro com contrabando de drogas. Em vias de ser preso, aceitou acordo como informante da DEA, a agência norte-americana de combate ao narcotráfico.

Seu próximo negócio, nos anos 1990, concentrou-se em informações. Cercando-se das pessoas certas, de programadores a ex-policiais, começou comprando coleções de registros de veículos e birôs de crédito para reuni-los em bases de dados consultáveis, comercializando informações pessoais para quem quisesse comprar.

O sucesso foi estrondoso, e grandes conglomerados de informações, como NexisLexis, passaram a neutralizar a concorrência adquirindo suas empresas. Passado o período contratual de quarentena, Asher abria novas firmas para infernizá-los, comprando qualquer acervo de dados que encontrasse pela frente, a fim de alimentar suas poderosas baterias de computadores.

Para cada pessoa seus sistemas criavam um número único de identificação, comparável aos IPs de computadores. Todas as informações que obtinha –endereços, vizinhos e sócios, carros comprados ou vendidos e para quem, casamentos e divórcios, multas de trânsito etc. etc.– eram marcados com esse código, facilitando a confecção de dossiês virtuais.

Asher morreu em janeiro de 2013, mas suas ideias e máquinas proliferaram para engendrar a era da supervigilância no pós-2011. Hoje alimentamos as Cambridge Analytics da vida entregando dados de mão beijada para a caterva Big Data.

O passado determina o nosso futuro, o que podemos ou não ser, fazer e obter, sob a ótica estreita da probabilística informacional. Adeus ao esquecimento.

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