Marcia Castro

Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

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Quando 1+1 não é igual a 2

Covid-19 deve ser discutida usando o conceito de sindemia

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Desde a introdução do vírus Sars-CoV-2 no Brasil, quase 600 mil vidas foram perdidas para a Covid-19, afetando desproporcionalmente indivíduos e regiões mais vulneráveis. O vírus, por si só, não é responsável por essa carga elevada e desigual. Contextos locais de desigualdades sociais, econômicas, e de prevalência de doenças não transmissíveis e seus fatores de risco (tais como obesidade), além de alterações ambientais e liderança política facilitam a propagação e concentração da Covid-19 e agravam suas consequências em certos grupos populacionais e áreas geográficas.

Essa dinâmica local é descrita pelo conceito de sindemia, ainda pouco utilizado. Ou seja, fatores sociais, econômicos, políticos e ambientais afetam o padrão de transmissão da doença, e a ocorrência simultânea e sinergística de duas ou mais doenças causam danos maiores do que a mera soma das consequências de cada doença. Essa dinâmica frequentemente leva a um aumento das desigualdades.

Parentes de pacientes internados no Serviço de Pronto-Atendimento do bairro Redenção, na zona centro-oeste de Manaus, se desesperam com chegada de cilindro de oxigênio na unidade.
Parentes de pacientes internados no Serviço de Pronto-Atendimento do bairro Redenção, na zona centro-oeste de Manaus, se desesperam com chegada de cilindro de oxigênio na unidade após falta do insumo causar mortes de pacientes de Covid-19 - Reprodução/TV Folha

Por exemplo, a região Norte, que historicamente observou modelos de desenvolvimento que visavam a exploração de recursos naturais, ignorando necessidades e cultura locais, carece de saneamento, água encanada e acesso a serviços de saúde, sofre com o desmatamento e as queimadas, e foi uma das regiões cujas consequências da Covid-19 foram mais severas, com perda recorde de anos de expectativa de vida devido à pandemia. Além disso, o Brasil enfrenta uma epidemia de sobrepeso e obesidade (mais severa entre pessoas com menos anos de estudo), condições que interagem com a Covid-19 resultando em maior risco de morte.

Aqui exponho três razões pelas quais devemos discutir Covid-19 usando o conceito de sindemia.

Primeiro, entender a Covid-19 como uma sindemia demanda a análise de dados com detalhamentos espaciais e sociais, permitindo distinguir grupos e áreas vulneráveis, e identificar iniquidades na exposição a doença, no acesso a serviços, e na capacidade de aderir a medidas de controle. Só essa análise detalhada garante a monitoração da saúde na perspectiva dos direitos humanos.

Segundo, não se resolve o que não se conhece. Um controle eficaz demanda conhecimento detalhado dos vários fatores que afetam a propagação da doença localmente. No caso da Covid-19, isso inclui acesso a transporte e serviços de saúde, qualidade da moradia, informalidade e comorbidades, dentre outros. Esse conhecimento, gerado na perspectiva dos direitos humanos, demanda a colaboração entre diferentes áreas da ciência e evidencia a necessidade de várias ações, muitas das quais dependem da colaboração entre diversos setores do governo. Respostas multisetoriais, fundamentadas no conhecimento multidisciplinar e implementadas localmente são a melhor forma de controlar sindemias e minimizar desigualdades estruturais históricas.

Terceiro, se há sinergia entre doenças, o controle das mesmas não pode ser isolado. Analisar a Covid-19 sob a ótica do conceito de sindemia permite identificar ações de controle que beneficiem várias doenças, promovendo a colaboração entre programas nacionais de controle, e otimizando a utilização de recursos.

As quase 600 mil mortes por Covid-19 são resultado da fatal sinergia entre a pandemia e múltiplas epidemias, desigualdades, mudanças ambientais e decisões políticas. Respostas que abordem as causas dessa sinergia são vitais para mitigar problemas estruturais na sociedade. Sem isso, próximas epidemias/pandemias replicarão o cenário atual, penalizando os mais vulneráveis, exacerbando desigualdades, e perpetuando injustiças sociais.

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