Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem

Por que a guerra?

Parece que sem destruir não conseguimos brigar por alianças e identidade

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Uma vez a humanidade assistiu atônita a um grande massacre de corpos e coisas. Assistiu porque tinha ferramentas melhores para assistir e matou porque tinha tecnologia melhor para matar. Ela tinha inventado a fotografia e depois o cinema para ampliar seu olhar e sua memória. E tinha criado aviões, tanques, submarinos e inéditos gases tóxicos para dizimar mais. Por ar, terra e mar. Pasmem, o nome do jogo era "corrida armamentista". Imagens traziam para dentro das casas pedaços de braços, pernas, troncos e crânios esbugalhados.

O horror da Primeira Grande Guerra foi tal que se pensou: não é possível que tenhamos, nós, seres tão inteligentes, feito uma coisa tão estúpida. Vamos refazer o pacto social: somos uma só espécie humana num único planeta. Formou-se assim, em 1919, a Liga das Nações (base da ONU). Vamos pensar melhor como viver menos mal com todos os outros? A Liga criou em 1922 a Comissão Internacional de Cooperação Intelectual (matriz da Unesco). [Um século depois, neste clima anticooperação, antiintelecto, anticivilização, sento e choro.]

A Comissão chama Einstein para debater um tema relevante para o mundo. Einstein convida Freud para refletir sobre a paz e a guerra e assim dois dos maiores gênios da época trocam cartas que foram publicadas com o título desta coluna.

Einstein elenca uma série de pontos "lógicos" para que nos organizemos em nossas demandas e saibamos negociar com o outro com método. Quem sabe no futuro com algum algoritmo a formular o acordo menos doído para todas as partes.

Rosto deformado por fios
Luciano Salles

Freud é mais cético. Ele já tinha teorizado a pulsão de morte e sabe que, grosso modo, civilização é impulso e recalque e, portanto, inelutável mal-estar. Mesmo assim, termina sua troca com Einstein se perguntando sobre a possibilidade de encaminhar conflitos e pulsões —tanto destrutivas quanto eróticas e massificantes— pelo simbólico e não pela força. "E quanto tempo teremos que esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista?"

Era 1932 e sabemos o resto da história. Freud conseguiu escapar de sua Viena em 1938 para morrer em Londres e os parentes foram pros campos de extermínio. Einstein e outros grandes cérebros trabalharam direta ou indiretamente para a bomba atômica. O mundo se devastou mais uma vez, numa carnificina ainda pior e com requintes de desvario mental.

Hoje, seja por dinheiro, território, reposicionamento no grupo (nome técnico: geopolítica), por narcisismo grandioso ou ressentimento, a guerra bate à porta. Parece que sem destruir não conseguimos brigar por dinheiro, território, alianças e identidade.

E continuamos evoluindo nas técnicas de destruição. Mas também nas ciências psíquicas. Sabemos que a ambivalência é estrutural e que os conflitos internos são angustiantes: é difícil amar e odiar ao mesmo tempo uma coisa. A gente inveja e odeia o "Ocidente". Faz discursos a favor da nossa tradição enquanto passeia de iate, compra bolsa e manda os filhos estudar fora, tudo no famoso Ocidente. Ou sonha esse sonho proibido e inatingível. A melhor estratégia é expulsar de si uma dessas partes, demonizá-la e odiar até matar.

Sabemos que nossa cultura aprofunda o gozo do olhar, tanto na via exibicionista quanto na voyeurista, até o obsceno —na literal palma da mão de um smartphone, muito inteligente.

Sabemos também que as narrativas fálicas —Grande Mãe tal ou Great Nação tal ou Grupo Eleito tal— são construções imaginárias para fazer a maioria trabalhar e morrer para o lucro de alguns. A maioria chama povo, o "alguns" chama elite e o esquema chama nacionalismo ou imperialismo, a depender da trama.

Sabemos também que está ficando cada vez mais difícil enganar pessoas, sobretudo jovens, para entrar nessa roubada.

Quanto tempo teremos que esperar?

Muito.

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