Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu

O sol se veste de luto

Na capital de todos os vícios, a 'Paixão Segundo João' se destinava menos aos crentes e mais aos perplexos

Ilustração colunista conti ilustrada
Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress

As obras-primas vão aos extremos da expressão. Rompem as formas artísticas habituais e resultam obscuras por tentarem dizer o indizível. O que resta delas são verdades que o tempo arruína. A “Paixão Segundo João”, de Bach, é dessas obras: uma ruína austera, difícil, febril.

Ela estreou na Sexta-Feira Santa de 1724, em Leipzig, sob a batuta de Bach, recém-nomeado diretor musical das igrejas protestantes da cidade alemã. E esteve em cartaz na terça-feira passada (27), na Sala São Paulo, na voz e nos instrumentos de época d’Os Músicos de Capella, grupo brasileiro versado no repertório barroco.

A “Paixão” tem como roteiro o “Evangelho de São João”, na tradução assonante e aliterante de Lutero —“Põe a espada na bainha” vira “Stecke dein Schwert in die Scheide”. O narrador é o evangelista, que recita longos trechos dos capítulos 18 e 19.

Jesus, Pilatos e Pedro são os protagonistas. O coro encarna a turba odiosa que se intromete no julgamento do Nazareno. Os cantores das árias, por fim, interpretam as aflições de personagens, de ouvintes da “Paixão” e do próprio Bach, que remontou textos do hinário luterano.

Até anos atrás, “Segundo João” era tida por prima pobre da outra paixão de Bach, a “Segundo Mateus” —essa sim escorreita, polida e, com dois órgãos e corais imensos, feérica. Se “Mateus” glorifica o cristianismo triunfante, “João” soa encalacrada.

No ambiente profano da Sala São Paulo, numa noite em que uma chuva de raios do inferno caía sobre a capital de todos os vícios, a “Paixão Segundo João” se destinava menos aos crentes e mais aos perplexos. Àqueles que, como Pilatos no palco, se perguntam: “O que é a verdade?”.

Aí, por um instante infindável, a polifonia Bach silencia: Jesus nada responde. Calam-se também os sacerdotes Anás e Caifás, os discípulos Pedro e João, Maria e Madalena, a horda que clama a Pilatos: “Crucifique-o! Crucifique-o!”.

À beira de completar 300 anos, “Paixão Segundo João” disse e diz muito do mundo. Ela foi vista como obra devota, mas musicalmente inferior às de Händel. Com Bach morto, foi escanteada pelo Iluminismo —por ecoar a Idade Média, ela seria pia no tema e atrasada na técnica.

A pauta mudou com o relançamento de Bach, por Mendelssohn, no século 19. Começou o culto ao compositor abstrato, o predileto dos virtuoses e dos concursos de organistas. Matemática, sua música pairaria acima da história, sem baixar às crenças de seu tempo.

Esse sentido se inverteu, em 1934, com a descoberta, nos Estados Unidos, dos três volumes da Bíblia de Bach. Cheia de anotações, ela mostra um crente imerso até o pescoço na mística luterana. (Acaba de ser publicada uma edição fac-similar; custa cerca de R$ 50 mil).

A Bíblia de Bach é tema de um curioso artigo, no New York Times de sexta (30), de Michael Marissen, autor de “Bach and God”. Curioso porque ele não toca em uma questão desagradável, tema de debates crescentes e belicosos: o antissemitismo da “Paixão Segundo João”.

João trata os judeus como malta e os responsabiliza pela morte do Senhor. Mas a música, por si só, é antissemita? Quando os judeus bradam, a polifonia se exacerba e o coro canta num uníssono grandiloquente. Parece que, de fato, a música coonesta a ira cega.

Na Sala São Paulo, porém, o que sobressaiu não foi o antissemitismo, e sim os contatos com o Brasil de hoje. Esse é uma terra onde, como a “Paixão” canta, “o sol se veste de luto”.

Com suas três traições, Pedro é envolvido por uma melodia compungida e melancólica. Ela serviria de trilha sonora para as delações de Antonio Palocci.

As hesitações de Pilatos se agudizam no zigue-zague dos contrapontos. Eles poderiam acompanhar os juízes do Supremo até o seu veredito crucial, daqui a dias. Os juízes responderão à pergunta: “O que é a verdade?”.

Boa Páscoa a todos.

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