Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Vende-se: angústia

O problema principal da minha existência podia ser formulado de modo a matar de riso meus companheiros

Eu tinha 13 anos. Na aula de religião e moral, o padre Manuel pediu que os alunos escrevessem duas perguntas num papel anônimo e lho entregassem. Deviam ser perguntas sobre as nossas preocupações mais profundas, e seriam anônimas para garantir o nosso desassombro.

Depois de recolher as perguntas, ele começou a lê-las em voz alta: "Masturbação faz mal?", "O preservativo é seguro?", essas coisas.

Então o padre tirou o meu papel e leu: "O que é que eu estou aqui a fazer?" A sala estourou numa gargalhada.

Ilustra da Luiza Panunzzio para Ricardo Pereira
Luiza Panunzzio

O padre levantou a cabeça e encolheu os ombros, desconsolado. Com toda a boa vontade, tinha-se disponibilizado para tentar apaziguar inquietações adolescentes, e um engraçadinho aproveitara a oportunidade para subverter o processo com uma piada idiota —e o padre parecia ter uma desconfiança bastante concreta sobre o autor da brincadeira.

Os meus colegas também. Sabiam que era, provavelmente, o tipo de coisa que eu faria, e procuraram os meus olhos para me vitoriar.

Sucede que eu não tinha feito de propósito. Era raro, mas, daquela vez, eu estava a sério: na pergunta "O que é que eu estou aqui a fazer?", "aqui" era referente ao planeta, não à aula de religião e moral. E "eu" não era o padre, era mesmo eu.

O padre voltou a olhar para o papel e disse: "Esperem. Quem escreveu isto completou com uma pergunta muito boa: 'Por que nascemos se depois temos de morrer?'".

E então toda a gente entendeu.

Mas era tarde. A minha angústia mais íntima tinha sido estrondosamente escarnecida --e isso, para minha surpresa, era tranquilizador.

O problema principal da minha existência podia ser formulado de um modo suficientemente ambíguo para matar de riso os meus companheiros. Um problema que dá vontade de rir não pode ser muito assustador. Uma dor que dá prazer ainda dói?

Tentar esclarecer o equívoco da minha existência tinha gerado outro equívoco. A minha vida era uma matrioska de enganos. Quanto mais eu tentava entender, menos entendia.

Por estar ocupado com esses pensamentos, não cheguei a ouvir a resposta do padre Manuel. Continuo a não saber o que estou aqui a fazer. Talvez seja melhor assim.

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