Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Em 'O Abatedouro', a forma artística e o lugar de fala da literatura de Zola

Ao contrário de seu modelo, o Balzac da 'Comédia Humana', Zola quis fazer uma obra 'menos social e mais científica'

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Esgotado há décadas, finalmente é republicado “L’Assommoir”, de Émile Zola, o primeiro romance naturalista. Ganhou agora o título de “O Abatedouro” (editora Eduel, 468 págs.) e uma tradução primorosa de Dilson Ferreira da Cruz, que providenciou um indispensável glossário da gíria dos operários parisienses da segunda metade do século 19.

A nova versão permite aquilatar a pertinência do romance de 1877 no presente, bem como a da literatura documental. A partir dele é possível repensar a literatura, hoje sacudida pelas questões de gênero e raça dos devotos do lugar de fala.

Sétimo dos 20 livros do ciclo dedicado a três gerações da família Rougon-Macquart, este é um capítulo da, como escreveu Zola, “história natural e social de uma família do Segundo Império” —o de Napoleão 3º, o Pequeno, entre 1852 e 1870.

Ilustração de duas molduras grandes em uma parede sem obras dentro delas. Ao lado esquerdo, há um homem olhando as molduras e, ao lado direito, há duas mulheres, um homem, um menino e uma meina olhando para a mesma parede. Todos usam roupas de época
Bruna Barros/Folhapress

Ao contrário de seu modelo, o Balzac da “Comédia Humana”, Zola quis fazer uma obra “menos social e mais científica”, mostrando como uma família, “uma raça”, é modificada pelo meio em que vive. Determinismo, pois, embasado na ciência e no positivismo da época.

Daí o empenho de Zola em perambular, de caderno em punho, pelos bairros pobres de Paris, anotando modos de falar e morar para mostrar a vida operária em “O Abatedouro”. Seus cadernos foram preservados e são tidos por compêndios etnográficos. Queria fazer literatura documental.

A heroína do romance é a lavadeira Gervaise Macquart. Ela vem do interior para Paris com o amante, o chapeleiro Lantier, com que tem dois filhos (Étienne, o caçula, será o herói grevista de “Germinal”). Raposão, ele a abandona. Mas a virtuosa Gervaise dá a volta por cima e namora o funileiro Coupeau, que coloca calhas pelos telhados da cidade.

Os proletários do romance, pois, estão mais ligados ao trabalho esporádico, aos bicos e ao artesanato, do que à grande indústria. São empregados avulsos ou microempreendedores. Caso de Gervaise, que de lavadeira passa a dona de uma lavanderia de bairro, chegando a empregar duas trabalhadoras. Parece o Brasil das periferias de hoje.

O casamento de Coupeau e Gervaise é um grande momento. Emperiquitados, os convivas saem do bairro popular para passear no Museu do Louvre. É um ambiente que não compreendem, não é o seu. Embasbacados e alvoraçados, assustam a fina flor parisiense.

Umas das telas que contemplam, na qual Zola se demora, é “Núpcias na Vila”, de Rubens. O casamento ensolarado e idílico do mestre barroco de antanho, com seus camponeses integrados à natureza, serve de contraponto para as núpcias dos trabalhadores do século 19, hostilizados pela urbanidade moderna e pela tempestade que desaba.

A contraposição entre a tela e o romance serve para ilustrar uma tese cara a Zola. O romance naturalista não espelha a realidade, disse. É uma tela translúcida que o temperamento do escritor impõe à realidade. Ela confere legitimidade ao escritor pequeno burguês, permitindo que fale em nome de uma mulher do povo.

A chuva passa e a festa de núpcias termina numa esbórnia degradante. A água que vem da natureza é substituída pela água transformada em álcool pelo alambique, uma máquina de entorpecer. A bebida intoxica em vez de lavar, envenena os personagens aos poucos.

No ensaio “Degradação do Espaço”, raro exemplo de crítica literária brasileira de alcance mundial, Antonio Candido diz que o domínio do álcool sobre a água n’“O Abatedouro” implica noutras passagens —“do trabalho para a vadiagem, da virtude para o vício, da vida para a morte”.

Esse deslocamento se dá na construção artística, na forma. Segundo o crítico brasileiro, o romance incorpora “o ritmo, a sintaxe e o vocabulário do povo para chegar a uma linguagem inovadora”. A arte supera o documento, e por isso pode captar outro fluxo, gelatinoso e rumo ao futuro: o dos trabalhadores por Paris.

Restrições a “O Abatedouro” o acompanham desde a sua publicação. Sua linguagem foi acusada de imunda por beletristas e diletantes da elite. Oriane, a duquesa de Guermantes de Proust, personagem maior da aristocracia em “À Procura do Tempo Perdido”, diz que Zola era “o Homero dos esgotos”.

As críticas da bancada dos progressistas também foram azedas, mas de natureza diversa. Lukács escreveu que Zola, em vez de fazer épicas narrativas como Tolstói, era descritivo e alegórico.
Pode ser —mas a análise Antonio Candido mostra muito mais que isso.

Hoje se diria, sem se atentar para a forma do romance, que Zola não tinha lugar de fala.

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