Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Leitura de 'A República das Milícias' leva à constatação de que dias piores virão

Obra do cientista político com formação de jornalista Bruno Paes Manso é um forte candidato a livro mais triste do ano

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O clã Bolsonaro sempre exalta o direito dos cidadãos a ter e usar armas. Ignorante que só ela, a primeira família não usa o argumento óbvio: o direito do povo em mandar bala em quem ataca a sua soberania está inscrito na segunda emenda à Constituição americana.

Diz ela: "Sendo uma milícia bem regulamentada necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado".

Aprovada em 1791, a emenda é fruto de levantes libertários: a revolução inglesa do século anterior; a francesa, que se encontrava no auge; e a guerra americana contra a coroa inglesa pela independência, vencida poucos anos antes.

Nos três casos, a mobilização de tropas populares para enfrentar os exércitos da aristocracia foi vital para o triunfo do poder burguês, plebeu e, no caso americano, anticolonial. Assim nasceu o mundo moderno, armado e atirando para matar.

O discurso de Bolsonaro é outro. Na imunda reunião ministerial de abril, gravada por ordem sua, ele rebaixou a Presidência ao seu nível, o da sarjeta: "Um bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia para a rua".

O que quis dizer, na sua sintaxe selvagem, é que, armado, o povo acabaria na marra com o confinamento. Fechou sua exortação assim: "Quero dar um puta de um recado para esses bostas! Por que eu estou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura". Cabe o clichê: estilo é o homem.

Ilustração de três homens atirando na bandeira do Brasil, atras deles, o fundo é vermelho. Da bandeira, escorre sangue
Bruna Barros

Na época, todos os comentaristas concordaram que o rosnado presidencial visava, sim, a imposição de uma ditadura —por meio do armamento de seus cupinchas, do núcleo duro da sua freguesia e de seu séquito de fanáticos. Mas havia algo mais no baixo calão do Cavalão.

Esse algo mais é o tema de Bruno Paes Manso em "A República das Milícias - Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" (Todavia, 302 págs.), um forte candidato a livro mais triste do ano. Ele esmiúça com sobriedade o processo de desagregação fluminense.

Bolsonaro e seus filhos, por exemplo, frequentam com assiduidade clubes de tiro. Pimpões, posam para fotos com fuzis e metralhadoras. Não são apenas infantiloides, perversos, maníacos por símbolos fálicos que simulam disparar armas à la Rambo.

"A República das Milícias" conta que muitos clubes de tiro são mocós para a compra e tráfico de armas de calibre pesado. O comércio de armamento é essencial para as milícias cariocas corromperem, ocuparem novos bairros, aterrorizarem; e assim enriquecerem seus membros e padrinhos —caso de Bolsonaro e caterva.

A segunda emenda usa "milícias bem regulamentadas" como sinônimo de batalhões populares de libertação. Não são essas as milícias do presidente. As dele são gangues que vendem proteção, gás, conexão com a TV paga e até casas. Além de roubar e matar, suas milícias exploram o povo.

Paes Manso é um cientista político com formação de jornalista. Ele recorre à primeira pessoa para relatar seus encontros com milicianos e a paisagem social na qual se movimentam. O que o espanta é a banalidade do mal. O crime virou norma; o Estado é bandido.

A condição de paulista circunspecto não o leva ao bairrismo —seu livro anterior, "A Guerra", com a socióloga Camila Nunes Dias, é um mergulho nos infernos do PCC. Mas o fato de ser estrangeiro ao Rio lhe garante distanciamento crítico de um sistema escabroso.

É dessa forma que "A República das Milícias" investiga os estertores de uma sociedade em desagregação. Fala de esquadrões da morte; de militares que migraram da tortura para o jogo do bicho; do homicídio de Tim Lopes; da ocupação marqueteira da Cidade de Deus; do fracasso das UPPs; do assassinato de Marielle Franco; do espraiamento da força bruta.

A eleição de milicianos para o Planalto é o corolário de um estado de coisas. Nele se imbricam a política, a polícia, igrejas, as Forças Armadas, as rachadinhas, as Vivendas da Barra, a corrupção, a condescendência das elites.

O triunfo miliciano espelha uma sociedade que se desindustrializou, não oferece empregos e na qual a miséria grassa. E a ideologia dominante, nessa terra sem lei nem ordem, é a de cortes que desmantelam o Estado —que, justamente, deveria implementar a lei e a ordem.

Não há força social capaz de fazer frente à anomia que se instala. Por isso "A República das Milícias" é um livro triste. Ele não oferece soluções porque elas não parecem existir. Sua leitura leva a uma constatação amarga: dias piores virão.

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