A Penguin-Companhia publicou mais uma reimpressão, a quarta, de "Uma Canção de Natal" de Charles Dickens.
Desde que foi lançada em 1843, a noveleta se tornou a encarnação da festa da confraternização. Vale a pena ler, ou reler, suas 131 páginas.
Até os votos de "feliz Natal", na época em desuso, entraram para a etiqueta global por obra do cálido afeto que Dickens lhe infundiu. As adaptações do original são macilentas, quando não grosseiras: Tio Patinhas, de Walt Disney, falseia Scrooge, o personagem principal.
Fiel a Dickens, a edição atual conta com a esclarecedora introdução da professora Sandra Sirangelo Maggio e as ilustrações de John Leech, que foi orientado pelo próprio autor. Conta especialmente com a excelente tradução de Rodrigo Lacerda.
"Uma Canção de Natal" pede que se creia em fantasmas. Nem por isso se afasta do realismo. A descrição que faz de Londres na Revolução Industrial é arrepiante. Adultos e crianças não tinham direitos. Trabalhavam com fome, na imundície, até caírem mortos.
Ebenezer Scrooge é um milionário sovina que vive com o objetivo único de acumular dinheiro. Explora seus empregados até o talo, prescinde de família e amigos, adora a trindade serviço-sopa-sono. Está só no mundo.
Numa véspera de Natal, surge a assombração de seu antigo sócio, um velho avaro já falecido. Ele lhe conta que passa mal na eternidade, porque foi brutal em vida, e avisa que três outros espectros o visitarão em breve. São os fantasmas de Natais do passado, do presente e do futuro.
A primeira alucinação faz com que Scrooge tome consciência de quem foi no começo da vida. O velho insensível era um menino que padeceu de carências materiais e afetivas; foi como as crianças que ora espezinha. Jovem, não quis casar; preferiu a fortuna individual ao amor compartilhado.
O espectro do presente lhe mostra onde estão as pessoas que hoje despreza. Elas passam por dificuldades, mas têm umas às outras, brincam entre si e comemoram os laços que os atam. Detestam Scrooge, e ainda assim lhe auguram um feliz Natal, torcem para que um dia fique generoso.
O fantasma do futuro lhe apresenta o seu fim. Será alvo da troça de seus pares e do desprezo dos que esbulhou. Seu tesouro será dispersado sem que ninguém usufrua dele.
A morte será o coroamento de uma existência vazia. Como um prego entortado numa porta, sua vida não teve serventia no passado e não serve de ideal para o futuro.
"Uma Canção de Natal" não acaba assim. Abandona o realismo para, aí sim, adentrar numa fantasmagoria delirante: Scrooge se regenera. Vira um homem bondoso, um velhinho simpático que se alegra com a alegria alheia. "Seu coração ria e isso lhe bastava", escreve Dickens.
O escritor não é pueril a ponto de prever um tempo de felicidade geral. Circunscreve-a ao Natal, ao único dia do ano em que o padecimento dos outros 364 dias é posto em suspenso. O feriado de alegria comum se insurge contra a iniquidade perene.
Na vida real, a superação da ganância é dificultosa. Inclusive no Natal, corroído pelo comércio e pelo lucro a todo custo. Mas na novela de Dickens pulsa a fantasia comunitária —aquela que paira sobre a sociedade em que poucos mandam e o resto obedece, em que uns demitem e outros são demitidos, em que uns têm e outros não.
A popularidade de "Uma Canção de Natal" se deve tanto à fantasia da regeneração quanto à persistência da pobreza. O próprio Marx, numa carta a Engels, elogiou escritores vitorianos —cita Dickens, Thackeray, Brontë— porque estiveram mais atentos à verdade da Inglaterra do século 19 do que políticos profissionais, publicitários e moralistas.
A diferença é que Marx via outro fantasma, que descreveu na primeira frase do "Manifesto Comunista", publicado cinco Natais depois de "Uma Canção": "Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo".
No Brasil deste Natal, a pobreza e o futuro são diversos. A miséria é a da estagnação, e não da industrialização acelerada. E não há quem ouse imaginar um futuro social que seja muito diferente do presente, marcado por cobiça e desigualdade. Ainda assim, restam os valores defendidos por Dickens no seu conto natalino. Não é pouco. A solidariedade e a compaixão, desde que incorporadas à ação, definem um modo de ser. São um jeito de aguentar o tranco.
Feliz Natal a todos. Sobretudo a Janio de Freitas. Que ele recomece revigorado. Que condense e rememore sua experiência e valores e nos dê livros de presente num próximo Natal.
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