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Charles Dickens tem misteriosa escrita em código decifrada por computador

Página redigida pelo escritor em símbolos, pontos e rabiscos foi traduzida após passar mais de 150 anos ininteligível

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Jenny Gross
Londres | The New York Times

Estudiosos de Charles Dickens tentaram por mais de um século decifrar uma carta de uma página redigida pelo escritor em símbolos, pontos e rabiscos. Não avançaram muito.

A carta passou décadas sem ser lida num repositório do Museu e Biblioteca Morgan, em Nova York, até alguns meses atrás, quando dois americanos com formação em ciência da computação fizeram avanços importantes em sua decodificação. Sua motivação foi um desafio lançado pela Universidade de Leicester, no Reino Unido, que postou uma cópia da carta online e prometeu £ 300, ou US$ 406, à pessoa que conseguisse decifrar melhor a mensagem.

O vencedor da competição foi Shane Baggs, de San José, no estado americano da Califórnia. Especialista em suporte técnico de computadores, ele nunca havia lido um romance de Dickens. Baggs transcreveu mais símbolos que qualquer das outras mil pessoas que aceitaram o desafio, ajudando a elucidar um mistério de 163 anos relativo a um dos escritores mais famosos do mundo.

"Nunca tirei mais que nota C em literatura e jamais imaginei que eu algum dia faria algo que pudesse interessar a estudiosos de Dickens", disse Baggs em declaração à imprensa. O segundo colocado na competição foi Ken Cox, de 20 anos, estudante de ciências cognitivas na Universidade da Virginia.

Baggs passou seis meses debruçado sobre o texto, geralmente depois do trabalho. Contou que tomou conhecimento da competição por meio de um grupo no Reddit que se dedica a decifrar códigos e mensagens ocultas. A competição para decodificar a carta de Dickens chamou sua atenção porque quebra-cabeças envolvendo taquigrafia são os que mais demoram para ser resolvidos, ele disse.

Baggs participou de três workshops gratuitos sobre decodificação dirigidos pelo Zoom por Claire Wood, professora de literatura vitoriana na Universidade de Leicester, e Hugo Bowles, que ensina linguística forense na Universidade de Foggia, na Itália. Os workshops enfocaram a forma obsoleta de estenografia que Dickens aprendeu aos 16 anos de idade com o manual "Brachygraphy", de um estenógrafo do século 18, Thomas Gurney.

No início de sua vida profissional, Dickens era repórter que cobria tribunais e o Parlamento, onde um sistema para fazer anotações rápidas era muito útil. Os símbolos e abreviações que ele empregava evoluíram com o tempo, e sua estenografia pessoal se tornou incompreensível para terceiros. Em seu romance mais autobiográfico, "David Copperfield", o próprio escritor a descreveu como "aquele selvagem mistério estenográfico".

Escrita em 1859, a carta de Dickens está guardada na Biblioteca Morgan desde pelo menos 1913. É provável que seja uma cópia que Dickens fez para si mesmo de uma versão em letra normal enviada a John Thaddeus Delane, o então editor do The Times of London. A versão integral se perdeu, disse Bowles, um dos organizadores da competição e autor de "Dickens and the Stenographic Mind".

Bowles revelou que passou anos tentando decifrar o texto, mas conseguiu muito pouco. "Pude ter certeza sobre apenas uns dez símbolos contidos na carta", ele disse. "Foi a mesma coisa para todos que estudaram a carta nos últimos 150 anos."

Claire Wood disse que as gerações anteriores não tinham acesso ao tipo de trabalho em equipe que é possibilitado pela tecnologia do crowdsourcing.

Segundo ela, dois terços das pessoas que assistiram às sessões de estudos por Zoom eram fãs de Charles Dickens, e os restantes eram especialistas em informática. A combinação de pessoas com formação literária e outras com experiência em ciência ajudou a abrir novos caminhos.

"Algumas coisas que são realmente óbvias aos especialistas em Dickens não são evidentes aos criptógrafos, e vice-versa, talvez", disse Wood. Os fãs de Dickens reconheciam letras como "H.W.", as iniciais de Household Words, título de um periódico popular do qual Dickens era proprietário e editor. Em outra instância, Baggs concluiu que um caractere que parecia o símbolo "@" e que muitos decodificadores pensavam significar "em" na realidade representava a revista literária "All the Year Round", fundada por Dickens.

Baggs, de 55 anos, disse em email que a decifração "não poderia ter sido feita sem outros decodificadores e sem a equipe de especialistas que foi capaz não apenas de reunir o trabalho de todos nós, mas também de interpretar as pistas".

A transcrição lança luz sobre uma disputa que o escritor teve com o jornal The Times of London. Na carta, Dickens diz que um funcionário do jornal errou quando rejeitou um anúncio que ele queria publicar no jornal, promovendo uma nova publicação literária, e volta a pedir que o anúncio seja veiculado.

"Me sinto obrigado, embora com muita relutância, a apelar ao senhor pessoalmente", diz parte da carta. Em outro trecho Dickens usou a frase "inverídico e injusto", que, segundo Bowles, é um exemplo de linguagem forte e direta do século 19, indicando que Dickens estava indignado.

Ken Cox, o estudante da Virgínia, usa taquigrafia para fazer anotações em classe. Ele contou que trabalhou sobre a carta por algumas semanas, algumas horas por dia, entre uma aula e outra ou enquanto cozinhava. "Às vezes é mais fácil quando você olha o texto e o deixa penetrar em sua cabeça aos poucos", comentou.

Cox disse que sua mãe é fã de Dickens e por isso ele cresceu conhecendo as obras principais do escritor. "É incrível que havia certas coisas que ele escreveu tanto tempo atrás e que ainda não tinham sido lidas", comentou. "Poder ler uma dessas coisas pela primeira vez foi muito bacana."

Bowles disse que o trabalho de Baggs, Cox e outros transcritores ajudou especialistas a decifrar 70% do sentido do texto de Dickens. Ao longo do próximo ano os organizadores vão pedir ajuda de membros do público para decifrar o restante da carta e outros textos de Dickens (o prêmio em dinheiro só foi oferecido uma vez).

Philip Palmer, curador e diretor de manuscritos no Museu e Biblioteca Morgan, disse que a carta de Charles Dickens era "um dos enigmas mais duradouros" do acervo da biblioteca. "O fato de finalmente termos em mãos o teor desta carta vai permitir que estudiosos aprendam mais sobre o método estenográfico de Dickens, além de sua vida e obra."

Tradução de Clara Allain

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