Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Disse Donne: 'nenhum homem é uma ilha'; e ele era um arquipélago

'Todo homem é uma parte do continente, um naco do todo', escreveu

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O escritor inglês John Donne (1572-1631) foi contemporâneo de Shakespeare. Não se sabe se alguma vez se viram. É provável que sim, porque moraram em Londres, onde Shakespeare era ator e Donne ia ao teatro.

Não dá para saber se leram um ao outro. Imagina-se que não, pois ambos foram publicados postumamente. Mas seus escritos passavam de mão em mão entre amigos e admiradores.

Donne é conhecido no Brasil por um poema e uma meditação. O primeiro, "Elegia: Indo para o Leito", foi traduzido com graça e brio por Augusto de Campos, musicado por Péricles Cavalcanti e cantado por Caetano Veloso.

Pelas tantas, Donne diz: "Deixa que a minha mão errante adentre/ atrás, na frente, em cima, embaixo, entre./ Minha América! Minha terra à vista,/ reino de paz, se um homem só a conquista,/ minha mina preciosa, meu império/ feliz de quem penetre o teu mistério!".

A "Meditação 17" foi escrita em 1623, quando o escritor se julgou à beira da cova, talvez com tifo. Hemingway pôs palavras suas no título de um romance, "Por quem os Sinos Dobram".

Contudo, a síntese do texto, super-repetida, é outra: "Nenhum homem é uma ilha". Donne escuta sinos, acha que proclamam a morte de alguém e escreve o seguinte.

"Nenhum homem é uma ilha, inteiro em si mesmo;
todo homem é uma parte do continente, um naco do todo;
se um torrão for levado pelo mar, a Europa diminui,
como se fosse um promontório,
como se fosse o solar de teus amigos ou até o teu;
a morte de qualquer homem me diminui
porque estou envolvido na humanidade,
e portanto não queira saber por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti."

Katherine Rundell publicou há pouco uma nova biografia do escritor, "Super-Infinito: As Transformações de John Donne" (Farrar, Straus and Giroux, 343 págs). O título é esquisito. "Infinito" visa o absoluto, se basta. Não há como ser super-infinito.

Mas o título faz sentido. Rundell nota que Donne reitera à exaustão o prefixo "super", cria as palavras super-exaltação, super-milagroso, super-morrendo, super-edificação. Parece querer ir além de si, do aparente, das formas e normas da linguagem, do universo até.

Ela faz o mesmo com "trans", o prefixo do subtítulo. A transformação de um estado em outro, o trânsito rumo a situações transcendentes, transparecem no transcurso das palavras transpor, transportar, transubstanciar e traduzir ("translate" em inglês).

Os transes das transições se sobrepõem em Donne. Mas a posteridade o confinou em duas ilhas. Na da juventude, era o arauto da lascívia, o poeta libertino de volúpia inexcedível. O danado só pensava naquilo. A palavra que mais escreve, depois de "the" e "and" é "love".

A ilustração -toda feita em linhas finas e soltas,  contém o retrato do poeta John Donne e ao seu lado direito está um de seus poemas manuscrito.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 10.fev.23 - Bruna Barros

Na ilha da velhice, Donne foi deão da catedral de St. Paul, a mais chique de Londres. Eloquentes e serpenteantes, seus sermões atraíam multidões, que anotavam o que dizia. Sua prosa é apaixonada e geométrica, labiríntica e confessional.

A biógrafa prova que Donne era bem mais complicado, não cabia numa ou duas ilhas; era um arquipélago que ascendia ao céu e se alastrava pelo super-infinito –vivido ou imaginário.

Ele foi batizado num tempo em que católicos eram condenados por alta traição, cujas penas eram a forca, o esquartejamento ou, para as mulheres, a fogueira. Seu irmão menor foi preso por abrigar um padre; escapou da pena capital, mas a peste o chacinou na masmorra. Doze de seus parentes morreram no exílio.

Sem emprego, foi pirata, atacou a Invencível Armada, esteve nos Açores e saqueou Cádiz. Quis ser diplomata no Sacro Império Romano –que, para Voltaire, "não era sacro nem império nem romano"– e malogrou.

Foi preso porque se casou com uma adolescente, Anne. Em 16 anos, teve 12 filhos com ela, incluindo dois natimortos e três que pereceram antes dos dez anos. Então Anne morreu e Donne surtou.

Pensava e fantasiava assaz em sexo, mas era mais com ela que se deleitava. Não fez poemas sobre sua morte. Explicou: "a grande tristeza não pode falar". Escreveu, isso sim, um tratado em defesa do suicídio.

Passou do culto à carne ao do divino e –adeus, papa-hóstias– foi ordenado reverendo anglicano. Subiu na hierarquia eclesiástica, frequentou a corte de Jaime 1º, enricou. Tinha 59 anos quando os sinos dobraram por ele.

Rundell sustenta que Donne se equipara a Shakespeare. E Augusto de Campos disse há meio século que, "poeta por poeta", Donne é melhor, embora o Bardo "seja maior". Pode ser. Como Shakespeare, Super-Donne transava todas, ia a ilhas infinito afora.

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