Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu União Europeia

Ecos das vozes de homens ocos nos cem anos de 'A Terra Gasta', de T.S. Eliot

O poema que o escritor lançou em uma revista desconhecida tem personagem trans e o caos existêncial deixado pela guerra

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As primeiras palavras importam. Homero começa a "Ilíada" assim: "Canta, ó deusa, o ódio de Aquiles", e na sequência conta a desventura do herói que, flechado no calcanhar, sucumbe na Guerra de Troia.

No primeiro verso da "Odisseia", o poeta clama: "Fala-me, musa, do homem astuto que andou às tontas". O viajante ardiloso é Ulisses, que vaga pelo Mediterrâneo ao fim da guerra e volta a Ítaca, onde Penélope é assediada.

Dante deixa os outros de lado e fala de si no início da "Divina Comédia": "No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída" (na tradução de Augusto de Campos).

Em "Os Lusíadas" Camões canta "As armas e os barões" que singram mares nunca dantes navegados para dilatar a fé e o império. Barão-mor, Vasco da Gama vê sua pátria metida "no gosto amargo da cobiça e na rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza".

Sobre um fundo bege, desenhos em lápis mostram uma paisagem devastada e em cada canto dois homens sentados em postura de sofrimento. Abaixo da ilustração está escrito a mão "A terra Gasta".
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti - Bruna Barros

Não se escrevem mais poemas que examinam a vivência de indivíduos, classes e povos. O último deles saiu há cem outubros, numa revista que seu autor, T.S. Eliot, editava e ninguém lia, The Criterion. Chamava-se "The Waste Land", "A Terra Gasta".

Arquiconhecidas, suas primeiras palavras são as únicas que a cultura europeia lembra do poema: "Abril é o mais cruel dos meses". O que elas significam é obscuro. Não têm a clareza de Homero, Dante e Camões.

O ianque Eliot tinha 36 anos e vivia em Londres. Era um bancário culto e sensível. Encalacrado num casamento horrendo, teve uma síncope nervosa e se internou na Suíça. Segundo Virginia Woolf, ele se maquiava para acentuar o rosto sofrido. Era chegado a uma autoflagelação.

Na calota norte, a primavera vibra em abril e atiça apetites de vida. Mas em "The Waste Land" o mês gera lilases na terra morta, mistura memória e desejo, rega raízes áridas com rajadas estéreis. Os trovões distantes da primavera ecoam em colinas de pedra.

Não dá para parar e pensar pisando em pedras. Elas são dentes cariados onde não se pode ficar de pé, sentar, deitar. Até a solidão é inviável em cima de pilhas de rochas. Se houvesse uma fonte, uma poça, se o barulho de água atraísse pássaros: drip drop drip drop drop drop drop. Mas água não há.

"The Waste Land" reúne ruínas letradas, registra o caos existencial de homens ocos. Para percorrê-la é preciso se deixar levar pela livre associação dos cacos espalhados pela Primeira Grande Guerra, pelo torvelinho da cólera que corrói e arruína a consciência.

A leitura do poema com olhos livres é cada vez mais difícil. Culpa de Eliot. Ao publicá-lo em livro, viu que era fininho e não parava em pé. Acrescentou 52 notas explicando citações da Bíblia, do Sermão do Fogo de Buda, de dezenas de escritores, filósofos, dramaturgos, místicos e antropólogos, citados em grego, latim, sânscrito, italiano e francês.

A profusão explicativa adquiriu vida própria. Há estantes a seu respeito, livros, ensaios, teses, edições anotadas, prefácios, posfácios e adendos. A erudição automatizada impede o corpo a corpo com "The Waste Land". É o que ocorre com os clássicos —de "Hamlet" a "Cidadão Kane".

O seu centenário provocou a erupção de festivais, leituras públicas, ensaios, biografias. O terremoto rebarbativo atesta o vigor dos versos, mas é música de maníacos. Visa leitores que seriam incapazes de perceber, sem o sismógrafo de especialistas, os estertores da terra exangue.

O ápice do excesso é a reedição, ampliada, do app de "The Waste Land", ora para iPhone. Ele traz o depoimento de 35 acadêmicos, a declamação de Alec Guinness, Viggo Mortensen e Jeremy Irons, além de duas do próprio Eliot, que parece um Tirésias redivivo, tal a sua pompa.

(Numa cena atualíssima, Tirésias, figura central do poema, é um trans "de tetas enrugadas" que antevê a transa borocochô de um casal. Dito e feito: o gajo avança com "mãos aproveitadoras" sobre a mulher entediada, e vai às vias de fato porque "sua vaidade não precisa respostas, dá boas-vindas à apatia").

O app não substitui a descoberta silenciosa do poema numa página, o encantamento, as iluminações súbitas e a lenta assimilação do seu sentido. Eliot escreveu que não é preciso entender uma poesia para curti-la. Tinha razão.

Datta. Davadhvam. Damyata. Ossos cegos não ferem ninguém, leitor hipócrita. Torres cadentes no ar violeta, na cidade irreal. O trovão disse: cada um no seu cárcere, pensamos na chave; pensando na chave, confirmamos o cárcere. Shantih shantih shantih. Outubro é o mais cruel dos meses.

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