Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Do rei da Romênia ao pau no gato, os bilhetes do náufrago João Gilberto

Disco com show de 1998 no Sesc traz alguns dos 'momentos de verdade' do músico

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Volta e meia, João Gilberto repetia rindo algo que ouvira do empresário de Ella Fitzgerald, de que a cantora relutava em fazer shows, mas quando se apresentava era preciso um guindaste para tirá-la do palco.

Era assim com ele. Os preparativos para shows eram nervosos. Mas, se no calor da hora, a sonoridade estivesse correta, João Gilberto tocava e cantava como se não houvesse amanhã.

Ao gravar em estúdio, porém, hesitava por meses entre duas ou três versões das canções que interpretara.

Os discos demoravam a sair porque achava que tinham ficado aquém do que queria.

Assim, nunca mais entrou num estúdio depois de "João Gilberto, Voz e Violão", de 2000.

Em contrapartida, os shows eram momentos de verdade. Depois, em casa, ouvia o que fora gravado ao vivo e estudava o que poderia fazer melhor em cada música. Deixava as modificações para outros shows.

Lançado há pouco, "Relicário: João Gilberto ao Vivo no Sesc – 1998" foi um desses momentos de verdade. Faltou pouco para que um guindaste tivesse de tirá-lo do palco, tal sua alegria e empenho.

O álbum tem quase duas horas de congraçamento límpido entre voz e violão.

Das 36 canções, nada menos que cinco são inéditas em disco: "Violão Amigo", "Nova Ilusão", "Solidão", "Carinhoso" e "Ave Maria" —a de Vicente Paiva e Jayme Redondo, a não ser confundida com a "Ave Maria no Morro", de Herivelto Martins, que também canta no disco.

Seu cetro é "Rei Sem Coroa", inédita em CDs e gravações piratas. A letra parece falar do próprio João Gilberto: "Canto minhas mágoas, meu sofrer ao violão/ O samba é minha nobreza, minha triste oração/ Eu sou um simples eu/ Um eu que Deus me deu/ O rei que vocês falam não sou eu".

O rei do sambinha existiu. Kamille Viola explica no encarte do disco que era Carlos 2º, rei da Romênia. Destronado na Segunda Guerra Mundial, acabou no Rio de Janeiro. Morou no Copacabana Palace "sem nenhuma realeza ostensiva".

Herivelto Martins e Waldemar Conceição ficaram intrigados com o destino patético de Carlos 2º. Inspiraram-se no soberano à toa para compor "Rei Sem Coroa", gravado por Chico Alves em 1945.

João Gilberto tirou do esquecimento a cançoneta do rei romeno. Mudou a letra —trocou "tradição" por "oração"— e o ritmo. Passou a canção a limpo, deu-lhe traços autobiográficos e fez do cascalho um diamante. Nova em folha, é outra joia do seu repertório. É ouvir para crer.

A ilustração feita em linhas pretas sobre fundo branco mostra um homem deitado em um sofá, com fones de ouvido, olhos fechados e sorriso no rosto. O chão apresenta fissuras de onde brotam pequenas flores. Ao fundo um céu escuro com estrelas brancas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 21 de abril de 2023 - Bruna Barros

"Relicário" é assim. Resgata e reinterpreta sambas perdidos ou arquiconhecidos, sublimes ou bregas. Dá-lhes lustro e sentido histórico de modo a que falem à sensibilidade presente, individual e social.

Ouça-se "Carinhoso", que Pixinguinha compôs há 105 anos, disfarçando um chorinho numa polca e, uma década depois, João de Barro escreveu a letra. É um cavalo de batalha em que todos desafinam em coro: "Vem! Vem! Vem! Vem! Vem sentir o calor dos lábios meus!".

Desde sempre, "Carinhoso" está no topo das canções brasileiras mais gravadas. De Orlando Silva a Marisa Monte, de Elis Regina a Paulinho da Viola, todos a cantaram. E ninguém chegou perto da simplicidade radical de João Gilberto.

Ele tirou os "vem!" rebarbativos e entoou um canto-fala prenhe de sedução. O seu "Carinhoso" pressupõe a audição prévia dos apelos esgoelados, mas reduz a música à sua essência oculta: o silêncio.

Não é preciso urrar o que está implícito. O menos é mais, e o mínimo, o máximo.

Outro bilhete de náufrago que João Gilberto colocou numa garrafa e jogou no mar do tempo está num CD, lançado por um selo espanhol, com o show que fez em Buenos Aires em 1962 com Os Cariocas. Embora o som seja sofrível, vale a pena ouvi-lo porque canta "Atirei um Pau no Gato".

De novo, ele apaga as repetições —os "gato-tô-tô não morreu-rreu-rreu" e "dona Chica-caca"— e vai logo ao assunto. A supressão é mais estranha que a de "Carinhoso". Mas desautomatiza a escuta alienada, mostra que tudo pode ser mudado, do folclore mítico à vida real.

Assim como em toda obra de João Gilberto, na qual a elite não pinta, o show no Sesc canta aspirações populares. Talvez por isso, ao ser ouvido hoje, a melancolia e a desilusão sejam mais perceptíveis que a esperança de um convívio social suave —ainda presente, mas em segundo plano.

O Brasil e sua música não foram no sentido que João Gilberto sonhou, pelo qual trabalhou e inventou. Seu legado, então, está mais próximo a uma frase de "A Flor e a Náusea", o poema de Drummond que ele amava e declamava: "Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".

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