Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu África

Conto de fadas de Winnie e Nelson Mandela terminou em tragédia

Autor sul-africano branco e antiapartheid retrata longeva e conturbada história casal em livro

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Janja & Lula, Michelle & Bolsonaro, Ruth & FHC, Rosane & Collor. Lá fora, Evita & Perón, Jackie & Kennedy, Michelle & Obama. Casais presidenciais difundem imagens da vida privada e levam a público algo íntimo –a relação amorosa– para angariar simpatia e fazer política.

"Winnie and Nelson: Portrait of a Marriage" trata de um desses matrimônios. Jonny Steinberg, seu autor, foi professor em Oxford e está agora em Yale. É um sul-africano branco que traiu sua classe e se bateu contra o apartheid. O retrato que traça do casal Mandela é trágico.

Na lateral esquerda da imagem temos Winnie Mandela, vestida em roupas coloridas e turbante com braço esticado e punho cerrado. Ao fundo um parte da bandeira da África do Sul com parte rosto de Nelson Mandela.
Ilustração para a coluna de Mario Sergio Conti de 22 de março de 2024 - Bruna Barros

Winnie e Nelson eram lindos ao se conhecerem. Ele, com 38 anos, media 1,94 metro, treinava boxe diariamente, vestia ternos do melhor alfaiate de Joanesburgo. Ela, com 22, era esbelta, tinha traços amenos e um sorriso de 300 dentes.

Nelson largou a mulher e duas filhas para ficar com Winnie, que continuou a transar com o rapaz com quem namorava. O casamento acabou quando ele socou a mulher na cara e teve de pagar uma multa. Ela rompeu com o namorado e o moço tentou se suicidar.

Winnie disse que só teve vida normal com Nelson no primeiro ano de casamento: "Foi uma vida inteira porque simbolizou o que ela poderia ter sido". Mas, durante o idílio, ele teve um filho fora do casamento; e nunca soube ao certo se era mesmo o pai de sua segunda filha com Winnie, que também o traía.

O conto de fadas sui generis foi lacerado pela política. Nelson caiu na clandestinidade e organizou A Lança da Nação, a ala do Congresso Nacional Africano (CNA) que punha bombas em prédios do governo e atirava em policiais torturadores. Foi condenado por isso.

Ao iniciar a via crucis de 27 anos de prisão, nomeou um quadro do CNA para ajudar Winnie. Realista, disse a um amigo que ela teria vida amorosa, mas com discrição, preservando a dignidade de ambos. O primeiro par amoroso foi o camarada que o marido indicou para protegê-la.

Presa pouco depois por subversão, ela ficou 491 dias numa solitária, escutando os urros que vinham da sala de tortura ao lado. Saiu da cadeia um trapo. Assim como acontecia com Nelson na cela, tudo o que Winnie falava em casa era gravado pela polícia.

Em seguida, carcereiros diziam a Mandela o nome dos amantes da mulher, alguns da idade de suas filhas. Não mentiam quando contavam que ela ficara alcoólatra, tomava drogas e traficava fuzis.

Enquanto ele abandonou a luta armada em favor da conciliação, ela arengava: "Libertaremos a nação com fósforos e ‘necklaces’". Necklace é aquilo que traficantes cariocas chamam de micro-ondas: embeber pneus em gasolina, pôr um inimigo dentro e tacar fogo.

Winnie montou o Mandela Futebol Clube, uma gangue de guarda-costas, bandidos e agentes infiltrados pela polícia, no qual ela recrutava parceiros de copo e cama. Foi implicada em 15 assassinatos feitos pelo clube.

No caso mais escabroso, Winnie foi acusada de mandar matar um garoto de 14 anos. O marido a defendeu: alegou que ela era vítima do apartheid e um estandarte da resistência negra.

Às escondidas, pediu que a Coca-Cola pagasse a defesa de Winnie, apesar de o CNA não aceitar doações de corporações. E fez com que o dinheiro fosse depositado no Mandela Family Fund. Steinberg escreve que a conclusão é inescapável: Mandela se corrompeu.

Condenada à prisão, teve a sentença reformada em segunda instância para o pagamento de uma multa. "Portrait of a Marriage" sugere que o governo racista interveio e amenizou a punição. Não queria antagonizar Mandela, peça-chave para uma conciliação que protegeria os brancos.

Com o CNA na legalidade, Winnie candidatou-se a representante de seu distrito, Soweto, mas perdeu. Nelson obrigou o partido a refazer a eleição, de modo a que ela vencesse e tivesse um cargo na direção do CNA. Ao agir assim, diz o livro, ele perverteu a democracia partidária.

Capa do livro 'Winnie & Nelson', sobre Winnie e Nelson Mandela
Capa do livro 'Winnie & Nelson' - Reprodução

Nelson elegeu-se presidente e nomeou Winnie vice-ministra. Demitiu-a porque ela desviou dinheiro público. Ele se divorciou e veio a casar com Graça, viúva do presidente moçambicano Samora Machel.

Eleito, Nelson foi um mandatário que reluzia no exterior e era fosco na África do Sul. Segundo sua chefe de gabinete, o Mandela presidente "era um dos mais tristes seres humanos" que conheceu.

Ao fim de uma longa demência, não reconhecia ninguém, mas fazia questão que Winnie lhe desse de comer na boca. Cinquenta e seis anos depois de trocarem o primeiro sorriso, ela era a única no quarto quando Nelson expirou. Winnie morreu quatro anos depois. O legado deles continua polêmico na África do Sul.

(Continua.)

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