Gâmbia aprova medida que pode legalizar mutilação genital de mulheres

Prática ligada a ideias de 'pureza sexual' foi proibida no país africano em 2015, mas ganhou novo impulso legal com votação

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Ruth Maclean
Dacar | The New York Times

Os legisladores da Gâmbia votaram a favor de uma medida que revoga a proibição da mutilação genital feminina, removendo as proteções legais para milhões de meninas e gerando temores de que outros países possam seguir o exemplo.

Dos 47 membros da Assembleia Nacional da Gâmbia presentes nesta segunda-feira (18), 42 votaram a favor do envio a um comitê para análise de um projeto de lei para revogar a proibição antes de uma votação final.

Manifestantes contra a mutilação genital feminina protestam em frente à Assembleia Nacional em Banjul - Muhamadou Bittaye - 18.mar.24/AFP

Especialistas em direitos humanos, advogados e defensores dos direitos das mulheres afirmam que revogar a proibição desfaria décadas de trabalho para acabar com o mutilação genital feminina, um ritual praticado há séculos ligado a ideias de pureza sexual, obediência e controle.

Se o projeto de lei for aprovado nos estágios finais, a Gâmbia se tornará o primeiro país do mundo a reverter as proteções contra a mutilação.

Os comitês do governo poderão propor emendas antes que o projeto retorne ao Parlamento para uma leitura final em cerca de três meses, mas os analistas dizem que ele já passou da etapa principal: seus defensores ganharão impulso e ele provavelmente se tornará lei.

A Gâmbia proibiu a prática da mutilação em 2015, mas não aplicou a proibição até 2023, quando três praticantes receberam multas pesadas. Um influente líder religioso no país de maioria muçulmana abraçou a causa e tem liderado os apelos para revogar a proibição, alegando que a mutilação, que na Gâmbia geralmente envolve a remoção do clitóris e dos pequenos lábios de meninas entre 10 e 15 anos de idade, é uma obrigação religiosa e culturalmente importante.

Os ativistas contra a mutilação genital se reuniram do lado de fora do Parlamento em Banjul, capital da Gâmbia, na manhã de segunda-feira, mas a polícia montou barricadas e impediu que muitos entrassem, ao mesmo tempo em que permitiu a entrada dos líderes religiosos que defendem a mutilação e seus apoiadores, de acordo com Fatou Baldeh, uma das principais oponentes da mutilação genital na Gâmbia.

"Foi muito triste testemunhar todo o debate e os homens tentando justificar por que isso deveria continuar", disse Baldeh após a votação. Ela disse que temia que, se os homens que lideravam a acusação fossem bem-sucedidos, eles tentariam em seguida reverter outras leis, como a que proíbe o casamento infantil.

Manifestante contra a mutilação genital feminina segura um cartaz em frente à Assembleia Nacional em Banjul - Muhamadou Bittaye - 18.mar.24/AFP

Dentro do Parlamento, os legisladores compartilharam seus argumentos. "Se as pessoas estão sendo presas por praticarem mutilação genital feminina, isso significa que estão sendo privadas de seu direito de praticar a religião", disse o deputado Lamin Ceesay, segundo o Parliament Watch, um projeto que promove a transparência no trabalho dos legisladores.

"Vamos proteger nossas mulheres", disse outro, Gibbi Mballow. "Sou pai e não posso apoiar um projeto de lei como esse". Ele acrescentou: "A religião diz que não devemos ferir as mulheres".

A mutilação assume diferentes formas e é mais comum na África, embora também seja difundida em partes da Ásia e do Oriente Médio. Reconhecida internacionalmente como uma grave violação dos direitos humanos, ela frequentemente causa sérios problemas de saúde, inclusive infecções, hemorragias e dor intensa, e é uma das principais causas de morte nos países onde é praticada.

Em todo o mundo, a mutilação genital está aumentando, apesar das campanhas para impedi-la, principalmente devido ao crescimento populacional nos países onde é comum. Mais de 230 milhões de mulheres e meninas foram submetidas a esse procedimento, segundo o Unicef, o que representa um aumento de 30 milhões de pessoas desde a última vez que a agência fez uma estimativa, em 2016.

Quatro legisladoras votaram contra o avanço do projeto de lei e uma se absteve na segunda-feira. Apenas cinco dos 58 legisladores da Gâmbia são mulheres, o que significa que os homens estão liderando uma discussão sobre uma prática que é imposta a meninas.

"Elas não têm voz", disse Emmanuel Joof, chefe da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Gâmbia.

A revogação da proibição trará "consequências sérias e ameaçadoras para a saúde e o bem-estar das mulheres e meninas da Gâmbia", disse Geeta Rao Gupta, embaixadora dos Estados Unidos para questões globais da mulher.

De 1994 a 2016, Gâmbia foi liderada por um dos ditadores mais notórios da região, Yahya Jammeh, que, segundo uma comissão da verdade constatou em 2021, mandou torturar e matar pessoas por um esquadrão de extermínio, estuprou mulheres e colocou muitas pessoas na cadeia sem motivo. Ele chamou de "inimigos do Islã" aqueles que lutam para acabar com a mutilação genital feminina.

Apoiadores de um projeto de lei que visa descriminalizar a mutilação genital feminina se manifestam enquanto o parlamento debate o projeto em Banjul - Malick Njie - 18.mar.24/Reuters

Portanto, foi um choque para muitos oponentes gambianos da mutilação quando, em 2015, Jammeh proibiu a prática, algo que muitos observadores atribuíram à influência de sua esposa marroquina.

A nova lei foi percebida como um momento decisivo na Gâmbia, onde três quartos das mulheres e meninas são mutiladas. Mas a lei não foi aplicada, e isso encorajou os líderes religiosos favoráveis à mutilação, que estão determinados a ter um Estado teocrático, a tentar revogá-la, segundo Joof.

Os religiosos do mundo muçulmano discordam quanto ao fato de a mutilação ser islâmica, mas ela não está no Alcorão. O imã da Gâmbia que mais se manifestou, Abdoulie Fatty, argumentou que "a circuncisão deixa você mais limpo" e disse que os maridos de mulheres que não foram cortadas sofrem por não poderem satisfazer os apetites sexuais de suas esposas.

Muitos gambianos acusaram Fatty de ser um hipócrita ao ressaltar que quando Jammeh proibiu a circuncisão, Fatty era o principal imã à época, porém aparentemente não disse nada.

Na primeira leitura do projeto de lei, há duas semanas, Fatty trouxe um grupo de mulheres jovens para entoar slogans a favor da mutilação fora do Parlamento. Com os rostos cobertos por véu, o que é incomum na Gâmbia, elas cantaram e agitaram cartazes rosas com os dizeres: "A circuncisão feminina é nossa crença religiosa".

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