Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Covid expôs as disfunções da sociedade

Se quisermos evitar uma ruptura política, não devemos tentar suprimir os mercados, mas sim abrandar seus ventos

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Vivemos em uma era de diversas crises: a Covid-19; uma crise de decepção econômica; uma crise de legitimidade da democracia; uma crise dos povos globais; uma crise das relações internacionais; e uma crise de governança global.

Não sabemos lidar com todas elas, em parte porque é difícil desenvolver as ideias necessárias para reformas. No entanto, é muito mais porque a política não consegue produzir as mudanças necessárias.

A série do Financial Times sobre o novo contrato social revelou várias disfunções: a superalavancagem das corporações; as decepções dos milenares ocidentais; a evasão de impostos corporativos; e a baixa remuneração de muitas das pessoas das quais dependemos especialmente na crise da Covid-19. Em meu artigo, referi-me além disso a algumas disfunções em longo prazo, incluindo o esvaziamento da classe média e o declínio da confiança na democracia, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Em 1944, dois livros influentes foram publicados por emigrados de Viena. Um, de Friedrich Hayek, argumentava contra a aproximação da maré socialista. O outro, de Karl Polanyi, insistia que essa maré era o resultado inevitável do mercado livre do século 19. Esses dois livros encerram verdades. Mas, para podermos compreender o que está acontecendo hoje, Polanyi parece um guia muito melhor. Se quisermos evitar uma ruptura política, não devemos tentar suprimir os mercados, mas certamente devemos abrandar seus ventos.

No Reino Unido, esse desafio foi reconhecido na época por dois grandes pensadores: John Maynard Keynes, que se concentrou na estabilização macroeconômica, e William Beveridge, que desenvolveu o plano para um Estado do bem-estar social. Grande parte da nossa discussão hoje é novamente sobre como sustentar a segurança econômica. As respostas mais uma vez terão de integrar a macroeconomia com a microeconomia. Esses são os dois elementos econômicos centrais na renovação da ideia de cidadania.

Mas esse senso de responsabilidade, como Keynes entendia, também tem de ser global. A conferência internacional em Bretton Woods em 1944, em que ele desempenhou um enorme papel, criou o FMI, para ajudar a administrar a economia global, e o Banco Mundial, para promover o desenvolvimento econômico. Hoje, ele certamente defenderia uma instituição ambientalista global igualmente forte. A necessidade de uma comunidade global em um mundo dilacerado pela guerra informou o lançamento da ONU por Franklin Roosevelt. Também levou à criação da comunitário Europeia do Carvão e do Aço em 1951.

Mais uma vez, hoje há novas ideias que merecem séria consideração. Eu salientaria a necessidade de tornar as economias menos dependentes de dívidas, parcialmente através da redistribuição da renda.

Outras ideias enfocam a reforma fiscal, incluindo pedidos de taxação da riqueza. Outras se concentram na necessidade de reforma da governança corporativa. Outras ainda salientam a necessidade de promover a concorrência. No nível global, a chegada da Covid-19 nos lembrou da necessidade de cooperação, assim como faz, ainda mais, o desafio da mudança climática. Mais uma vez, há ideias para lidar com as duas coisas. Mas elas exigem uma aliança de política com perícia, nos planos doméstico e global, assim como aconteceu nos anos 1940 e 1950.

Nos anos entre guerras, um período de perturbação e divisão comparável com o atual, a política produziu o tipo de líderes e relacionamentos entre países que tornaram impossível fazer qualquer coisa ambiciosa.

A Liga das Nações faliu. O mundo só se recuperou depois de passar pela fornalha da guerra. Mesmo então, foi necessário o início da Guerra Fria para os Estados Unidos lançarem o Plano Marshall e começarem a recuperação europeia.

As ideias nunca são suficientes. Precisa haver consenso, especialmente nas democracias, sobre o que é necessário. Jimmy Carter, e não Ronald Reagan, indicou Paul Volcker, o carrasco da inflação, e o trabalhista James Callaghan, e não Margaret Thatcher, declarou em 1976 que "o mundo aconchegante que nos disseram que continuaria para sempre, onde o pleno emprego seria garantido por uma canetada do chanceler, cortando impostos, os deficits orçamentários, esse mundo aconchegante acabou".

Os inimigos externos muitas vezes garantiram a união interna e cimentaram alianças. Mas mesmo que isso pudesse funcionar agora tornaria nossas ameaças globais piores do que já são.

No presente, infelizmente, a força mais poderosa na política mundial é um autoritarismo nacionalista ressurgente, como no período entre guerras. Com exceção do regime chinês, a característica comum desses autocratas é o desempenho do poder pessoal. Os líderes têm pouco interesse pela complexidade da política objetiva. Ao contrário, eles oferecem a seus apoiadores a carne vermelha do combate de gladiadores.

O debate sobre o brexit foi um bom exemplo. Enquanto isso, um impulso dominante da política de esquerda se baseia não em políticas, mas em identidade, afirmada contra as ideologias conservadoras e nativistas da direita. Com tais políticas, as chances de um consenso para se criar um mundo melhor em múltiplas dimensões parecem mínimas.

Mas não é de modo algum desesperador. A política de algumas democracias ainda parecem sãs e eficazes. A UE parece estar unindo forças, finalmente. A total incompetência dos populistas nativistas finalmente ficou clara. Talvez muitos membros da velha classe trabalhadora comecem a ver o presidente dos EUA, Donald Trump, como a fraude que é.

Talvez ressurja uma coalizão de reformistas radicais, mas sensatos, para reconstruir as políticas internas e a política global. Talvez a própria crise da Covid-19 seja o catalisador disso. Mas serão necessários vontade e talento para criar novas coalizões de ideias e interesses. Afinal, a mudança sempre tem a ver com política. As políticas propõem. A política dispõe.

Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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