Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Quem vive em metrópoles brasileiras deve torcer pela recuperação do centro do Rio de Janeiro

Nosso grande laboratório da vida urbana desde Machado e João do Rio tem agora a chance de retomar um pouco da urbanidade perdida

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Todos os centros das grandes cidades brasileiras têm problemas. Mas o centro do Rio merece um olhar especial. Afinal, foi ali que surgiu grande parte da vida urbana, que pautou a própria experiência de cidade no Brasil.

Ainda durante o século 19, enquanto outras cidades brasileiras viviam um certo bucolismo, no Rio os personagens de Machado de Assis já estavam fascinados pela cidade: o campo de Santana, o Passeio Público, e a rua que é o símbolo da vida urbana da época –a rua do Ouvidor. “Era eu que as acompanhava a toda a parte, missas, teatros, rua do Ouvidor...”, diz um personagem do conto "Primas de Sapucaia" ao sublinhar a importância da rua para as visitantes.

Em 1904, surge a avenida que materializa o desejo da capital brasileira de colocar um pé na modernidade: a avenida Central, depois Rio Branco. Ela fascinava os cariocas com suas vitrines, luzes, calçadas largas, cafés e até um hotel com os primeiros elevadores da cidade. A avenida galvanizou o encantamento exagerado do cronista João do Rio: “Uma nova estética surge, a estética do milagre animador. A natureza é outra, utilizada pelo homem, vista na corrida dos automóveis. A vida das cidades tem esse frenesi de saber, esse desespero orgiástico do domínio, de audácia, de energia cerebral”. Como tudo tem dois lados, a criação da nova avenida reforçou um processo infelizmente conhecido dos brasileiros, a expulsão de moradores para cada vez mais longe do centro.

As sucessivas transformações do centro deixam marcas ainda mais visíveis: a destruição do Morro do Castelo em 1922 e a construção da avenida Presidente Vargas, em 1944, uma cicatriz que separa o centro de negócios e a zona portuária. A cisão se intensifica nas décadas de 60 e 70, com a destruição do Palácio Monroe e a construção do elevado da Perimetral.

Se o centro ainda era o lugar de lazer, negócios, jornais e sedes de empresas, parte dessa vitalidade vai migrando para a zona sul. A legislação do Rio também desestimulou a existência de prédios residenciais no centro, principalmente entre as décadas de 1960 e 1990, trazendo aquele fenômeno das ruas cheias de dia e vazias à noite. No sombrio “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de 1994, Rubem Fonseca já imaginava um centro quase distópico, em que o personagem principal perambula pelas ruas vazias interagindo com prostitutas e tribos de moradores de rua.

É esse centro do Rio que está em jogo e que a Prefeitura do Rio pretende encarar, com o projeto Reviver Centro. Conversei com o secretário de Planejamento Urbano do Rio, Washington Fajardo sobre isso. “É claro que há subcentros importantes mas é o centro que concentra a maior fatia dos empregos e serviços não só da cidade, mas da própria região metropolitana”.

De fato, o descompasso é grande: 800 mil empregos diretos e apenas 41 mil moradores. Para Fajardo, o projeto vai dar certo se mais pessoas se interessarem mudar para o centro: “Precisamos ser mais ousados”.

A primeira frente é facilitar a conversão dos prédios comerciais em residenciais –os retrofits– com simplificação de legislação –“Vamos desregular a função residencial”. Depois da aprovação do projeto pela Câmara, já foram aprovados dois empreendimentos residenciais.

A segunda frente é o espaço público. 51% dos respondentes de uma pesquisa da Prefeitura não se sentem seguros em andar a pé, principalmente as mulheres. Fajardo usa o termo "autoridade pedestre" para contemplar a importância daquilo que normalmente passa debaixo dos radares dos planejadores urbanos –calçadas, sombras, árvores, área para entregadores, iluminação, e onde for possível, bancos e mesas na rua. Essa é a base para a criação de duas áreas piloto, na Rio Branco e Cinelândia, para avaliar até que ponto mais cuidado e fiscalização podem melhorar os espaços públicos. Cada nova reforma na região, como o do Sesc Ginástico, está sendo considerada pela equipe de governança, como uma "externalidade positiva" das ações.

O projeto não vai conseguir abarcar todos os problemas. Há imóveis abandonados do Município, do Estado e da União, que recentemente noticiou sem nenhuma cerimônia leilão de edifícios históricos como o Capanema. Mas é um alento ver energia indo para um lugar tão importante na história da vida urbana brasileira. A Perimetral já veio abaixo; por que não sonhar com avanços maiores?

A possibilidade de recuperar a vitalidade do centro do Rio deveria entusiasmar todos os que amam e pensam as cidades. Se a literatura conseguiu transmitir um pouco dessa história, os próximos passos ainda estão para ser escritos. Não veremos personagens machadianos de pince-nez na rua do Ouvidor, mas se pudermos ver pessoas reais saindo de casa, de sandália havaiana, para comprar pão na Manon Ouvidor, sem medo da rua, já terá sido um ganho.

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