Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu Rita Lee

Na música de Rita Lee, os ecos de uma cidade e da memória coletiva

Nas redes sociais, as lembranças evocam a juventude perdida de cada um

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As postagens torrenciais e emocionadas logo após a morte de Rita Lee confirmam: ela foi onipresente na vida de quem cresceu nas décadas de 70, 80, 90 —e talvez até hoje.

Um casal postou que começou a namorar ouvindo "Baila Comigo". Mulheres declaram sua reverência à cantora que exortou e praticou a liberdade de buscar o prazer. Um amigo escreveu algo prosaico: "o primeiro disco que eu comprei foi da Rita Lee", como se isso fosse a chave para a compreensão de que ele também já foi um jovem destemido que pegou um ônibus, entrou numa loja da Hi-Fi, comprou e ouviu o disco na sua vitrola até gastar.

Parece que buscamos nas lembranças coletivas um pedaço da nossa própria vida. Um amor, uma viagem, uma alegria. E como há lembranças!

Em sua deliciosa biografia, lançada em 2016, Rita conta da conquista gradual da cidade onde ela cresceu e reinou. Uma cidade onde uma menina de classe média brincava na rua e pegava bonde. Sim, bonde. Rita ia da Vila Mariana até a escola, ao centro —a Kopenhagen ficava na parada final— aos cinemas —o cine Leblon, a "duas paradas de bonde em direção ao centro". Já para ir ao Cine Metrópole, onde assistiu 14 vezes (!) a "Hard Day's Night", dos Beatles, ela ia de ônibus mesmo.

Sob as árvores do então futuro parque Ibirapuera, onde seu corpo foi velado, Rita fazia picnic com a família Jones. No aeroporto de Congonhas, ela e suas irmãs mandavam gestos e gritos exagerados aos passageiros, que, embasbacados, respondiam animadamente.

A parte mais prosaica e talvez a mais importante das lembranças está fora de casa. As meninas exploravam a vizinhança, interagiam com os meninos, faziam brincadeiras de mau gosto com os passantes, andavam de bicicleta e até participavam da procissão da Sexta-Feira da Paixão... Os limites da molecagem eram testados ali.

Talvez essa familiaridade com São Paulo explique um pouco da segurança que Rita exibiu ao falar das idiossincrasias da cidade e de seus habitantes. A nossa mais completa tradução pode falar mal da própria cidade? Pode, claro, mas sempre com aquele humor moleque. Em "Na Avenida Paulista", somos lembrados de que em São Paulo

"Não existe praia
Pra afogar minha sede
Eu encho a cara
Eu picho a parede"

Sobre as paulistanas, ela também não deixou barato, na música "As Minas de Sampa".

"Tem mina de Sampa que é discreta, concreta,
Uma lady!
Nas rêivi ela é véri, véri krêizi"

A famosa declaração sobre a falta de personalidade das paulistanas gerou reações indignadas da mídia da época. A cantora moleca não deixou a patrulha ideológica ganhar espaço: "Quando eu morrer, esses mesmos caras vão dizer que eu sou um gênio, quer apostar?".

As letras vão muito além da concretude. É de um estado de espírito que fala a lindíssima "Lá Vou Eu". No trecho "num apartamento, perdido na cidade, alguém está tentando acreditar que as coisas vão melhorar", estão implícitas tanto a pequenez das pessoas diante do gigantismo da cidade quanto a sua grandeza em acreditar que algum dia as coisas vão melhorar. E como não se emocionar com

"Na medida do impossível
tá dando pra se viver
Na cidade de São Paulo
O amor é imprevisível
como você
e eu
e o céu"

No seu livro, as memórias da menina vão dando lugar à música, aos festivais, aos discos, casamento, filhos, viagens, baladas, internações, mortes. A vida segue, mas dá para ver como as memórias da infância são fortes, sensoriais, essenciais.

Em uma entrevista, a própria Rita explica essa nostalgia que nós temos da infância. "Tenho saudades de tudo… do caminho que fazia a pé para a escola, da molecada da rua, do armazém do seu João, mas principalmente da minha antiga família e do meu castelo encantado da Joaquim Távora."

Sim, temos saudade nós também do caminho que fazíamos para a escola, da molecada da rua, das lembranças de cada episódio que só teve importância para nós mesmos.

Quando as lembranças são compartilhadas ao som de uma música comum e maravilhosa, viram cola para esse ritual humano de lembrar, contar, seguir em frente e diminuir um pouco a dor inerente a estarmos vivos por um período tão breve.

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