Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Ora, direis, ouvir ovnis

É natural que a descrição dessa passagem de poder oscile entre referências realistas e imaginárias

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O governo Lula dispõe-se a desarmar corpos e espíritos. O problema é saber qual a realidade visada, se a real-histórica ou a paralela. Um lance pertinente: na última sexta-feira de 2022, hasteou-se a bandeira a meio-pau no QG de Brasília, em homenagem a Pelé. Lá fora, para os acampados, era o sinal do golpe imaginado. Seguiu-se uma profusão de louvações aos céus e, frente aos vídeos, um homem corpulento bradava "perdeu, mané".

Na realidade paralela, o perdedor transformava-se em vitorioso. No real-histórico, naquela mesma hora, o verdadeiro derrotado já estava a bordo de um avião militar rumo à Flórida. A sequência de eventos é miúda, mas tem carga simbólica. Primeiro, a fuga patética do mandatário pela lateral do palácio, sem aviso público. Depois, Orlando constava como destinação real, mas no imaginário coletivo era mesmo a Disney, o Shangri-la pequeno burguês que o ex-ministro da economia achava incompatível com empregadas domésticas. O desgoverno fantasioso de verdade dava lugar aos parques temáticos da fantasia.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião ministerial no Palácio do Planalto, em Brasília - Adriano Machado/Reuters

É natural que a descrição dessa passagem de poder oscile entre referências realistas e imaginárias. Estas últimas sempre estiveram e continuam ativas na realidade construída pela rede fechada de desinformação do extremismo, em que a sociedade se desenha como uma Babel de caos e perdição. Não se desarma de um dia para outro uma máquina de destruição do sentido da história e do senso comum, em que o verossímil parece abduzido por aliens. Sobre a transmissão do cargo, disse uma manifestante: "Essas imagens da posse de Lula são montagens da mídia, recuso-me a acreditar".

Em 1975, avaliando a Revolução dos Cravos, Jean-Paul Sartre observou que alguns jornais portugueses ainda não haviam percebido que "acabou a ditadura e querem continuar imbecilizando o povo". Entre nós, ao contrário, a imprensa corporativa dignificou a informação, em confronto com um setor da esfera digital, ávida por monetização de conteúdos a qualquer preço moral. Nesta, ex-mandatário ainda manda.

Esse setor da rede eletrônica constitui-se hoje como intelectual orgânico coletivo de facções extremistas. Como rede e público são culturalmente a mesma coisa, os dispositivos imbecilizam ao mesmo tempo em que são imbecilizados. Em termos hermenêuticos, a expressão "perdeu, mané" é um vigoroso corte real, de fundo psicanalítico. É imperativo aplicá-la com rigor de lei às retropias do terror doméstico que, de tão familiares, na risonha avaliação do novo ministro da Defesa, poderiam "esvair-se". No entanto, persistem. Enquanto isso, na frente do QG, acampam cachorros de rua atraídos por lixo e resquícios de churrasco. Estes não darão ouvidos a ovnis.

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