Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Tirando as máscaras

A comunicação eletrônica é revolucionária quanto à locução, mas com mediocridade reveladora do pior no humano

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Numa fábula de Esopo, o cão é atraído por uma máscara caída no caminho. Depois de conferir, afasta-se, refletindo: "É bonita, mas não tem miolos". Noutra, atravessando o rio com um pedaço de carne na boca, o cão vê no fundo a sombra maior do petisco. Abandona então a presa em busca da miragem, perdendo tanto a carne quanto a sombra.

Atualizadas, as historinhas ensejam ponderação sobre a realidade artificial (agora "computação espacial") formadora de cidadania e até sobre a corrosão do caráter que, entre nós, vem caracterizando a esfera pública. São funcionais as máscaras sociais construídas pelo tecnomercado, mas o preço é a neutralização dos "miolos", isto é, da autonomia de pensar e de discernir moralmente. Trocam-se fatos pelo mascaramento deslumbrante da tecnologia, em que verdade e mentira se equivalem automaticamente.

 Vândalos bolsonaristas atacam o Palácio do Planalto
Vândalos bolsonaristas atacam o Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino/Reuters

Com esse fundo, cabe perguntar como é possível que, num curto prazo, maiorias silenciosas tenham se convertido em irascíveis bolhas falantes nas redes sociais. Hipótese de Umberto Eco: "A internet deu voz aos imbecis". Na verdade, deu voz a todo mundo.

A comunicação eletrônica é revolucionária quanto à locução, mas com uma mediocridade reveladora do pior no humano. Sem autonomia elocutiva, confunde-se fala de papagaio com liberdade de expressão. A função mensageira, que as mitologias atribuíam aos anjos, parece hoje assumida pelo Psicopompo, mítico condutor dos mortos: a tecnologia desnorteada extermina o diálogo.

O que se entrevê de imediato nas redes deixa perceber que, não só meros instrumentos do homem, são objetos psiquicamente refletidos. Quer dizer, demandam, além de racionalidade funcional, sensações e sentimentos, presentes nas regiões da consciência e do subconsciente. Dão margem a certa descoberta de si mesmo. E a uma tosca interpretação de liberdade.

Descobrir-se implica desnudamento pessoal, da juventude ao amadurecimento. Mas nem todos vivem essa reinvenção de si mesmo, não amadurecem. É que na recomposição de imagens do corpo próprio, a máscara ("persona", em latim, daí personalidade), componente moral do caráter, modula-se dialeticamente: imbecil é o que não se descobre.

Mas, a rede, como objeto psiquicamente refletido, democratiza e acelera o processo, ao modo de um piloto automático de almas mortas. Tal é o êxtase do desnudamento digital: o imbecil exibe-se com descaramento, enquanto o deslumbre da tecnosfera o prende no loop de zeramento do caráter, na máscara sem miolos. Moralmente nu, abre-se à liberdade egóica de odiar, ofender, destruir. E, atraído pela sombra perdida de si mesmo, vota nos inomináveis, não por pacto deliberado com o mal, mas por colapso humano.

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