Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Apagando realidades

Da guerra, sobressaem o aumento da capacidade de assassinar, a desumanização do outro e a polarização da empatia

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A guerra russo-ucraniana parece caso exemplar da tese pós-modernista de apagamento virtual da realidade. Substituído por números e discurso burocrático, o morticínio sumiu da mídia. No entanto, continua. O espaço midiático dado aos mortos foi ocupado por israelenses e palestinos com contagem alarmante, mas sem que nada justifique a supressão dos europeus. Fica implícita a suposição de que o público estaria saturado, não de guerra propriamente, e sim de um tipo de conflito.

Real é a perenidade da violência extrema, obsessiva no imaginário contemporâneo. Quem nunca viu guerra de frente é para ela atraído por noticiário ou filmes. Diz Erasmo num adágio que "bem parece a guerra a quem não vai nela" ("bellum dulce inexpertis"). Não é gozo com sofrimento alheio, mas espanto ético com a justificação de atos considerados imorais numa situação normal, senão perplexidade ante o enigma do homem como único mamífero que se autodestrói. É frustrante tentar compreender o brutalismo em grande escala, cujas vítimas imediatas são civis indefesos e crianças.

Soldados ucranianos disparam com uma M-46 na linha de frente do combates com russos perto de Seledar, na região de Donestk, em novembro de 2022
Soldados ucranianos disparam com uma M-46 na linha de frente do combates com russos perto de Seledar, na região de Donestk, em novembro de 2022 - Iryna Rybakova - 10.nov.22/Reuters

Cabe ao jornalismo o metabolismo social desse fenômeno. Uma coisa, porém, é a construção midiática do acontecimento, outra, o fato bruto das atrocidades: os boletins ficam aquém da realidade dilacerada de corpos e nervos. Assim como a extensão da guerra à vida cotidiana normaliza o horror, o jornalismo centrado em ocorrências (baixas militares, vítimas civis), pode apenas acomodar, como no espetáculo, o olhar do espectador ao processamento de seu medo. E, se aquilo que se lê ou se vê não é compartilhado pelo sentimento comunitário, o fato não existe.

Toda a atenção dada à notícia continuada obedece a um ciclo de interesse análogo ao dos relatos ficcionais. Quanto mais conhecidos os personagens, maior a empatia. O assassinato de uma mãe palestina e filha numa igreja por um sniper, índice "balcânico" de limpeza étnica, passou em branco. Não se sabe das 24 horas de desesperança no cotidiano de Gaza. É como se não houvesse realidade atroz porque não aparece no espelho da mídia.

Por isso, algo tão presente até há pouco, como as chacinas no front russo-ucraniano, dissipa-se, não por irrelevância, mas por fadiga do já conhecido e emergência do mais atual. Não é tanto o fato da morte brutal em si que mobiliza consciências, e sim a sua atualidade compassiva. Saber-se humano é ser capaz de atualizar sua própria humanidade. Dos números de guerra, entretanto, sobressaem apenas o aumento da capacidade de assassinar, a desumanização do outro (o terrorista do Hamas, o sniper israelense, o bombardeio de hospitais, o infanticídio) e a polarização da empatia. Nos relatórios, na mídia, estatísticas são verdades frias, humanamente neutras. Junto com a pública "fadiga de compaixão", apagam a realidade.

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