Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Rede de redes

Como foi que você acabou a noite passada chorando com as fotos do seu amor da adolescência com o marido e os dois filhos?

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Pedro Mairal

Você pensou que as “redes sociais” têm esse nome porque são uma megaestrutura de comunicação, mas na verdade se chamam assim porque você fica preso nelas feito um peixinho. Não consegue mais escapar. A aranha da sua angústia teceu uma enorme teia. Como foi mesmo que você acabou a noite passada, às duas da manhã, chorando e com vontade de morrer, olhando as fotos do seu amor da adolescência de férias com o marido e os dois filhos? Vamos passo a passo.

Mulher aproveita dia de sol na praia - Pasko Maksim - stock.adobe.com

A angústia já estava aí. Você a escondeu bem. Achou que aquele tinha sido um dia bom, e talvez tenha sido mesmo. Algumas coisas no trabalho deram certo. Você conseguiu finalizar alguns assuntos, começar outros, sair sozinho para almoçar numa terça-feira de sol, sem que ninguém te interrompesse nem falasse com você: apenas o prato do dia e seu livro. A tarde também fluiu bem, com um chá, alguns telefonemas, arquivos em ordem, uma leve dor no pescoço e, quase sem olhar o relógio, chegou a hora de voltar para casa. No apartamento, o seu gato, as suas plantas e um pouco de roupa para lavar. Tudo quieto, tudo calmo. Onde a angústia estava escondida, então?

Depois de jantar, você abriu a caixa de pandora do seu laptop. A deriva da web. Foi fácil cair nos caça-cliques das notícias de violência nos jornais. Uma mulher policial que matou um ladrão. A forma como o corpo do rapaz desaba no ângulo filmado pela câmera de segurança. Um ciclista atropelado por um trem. Atenção, imagens sensíveis. Como se vulneráveis fossem as imagens, as que devem ser protegidas. O vídeo era interrompido um segundo antes de o trem passar por cima dele. E dentro do seu cérebro acontecia o acidente. A sua cabeça deu continuidade ao movimento do trem e imaginou a morte. Você matou o ciclista.

Você quis deixar as coisas mais leves passando à flutuação do Instagram. Dois seguidores novos, desconhecidos. Coraçõezinhos voadores na corrente sanguínea. Mas você apertou o ícone da lupa de busca. E ali a sua angústia continuou escolhendo coisas. Porque não é que as imagens provoquem angústia, e sim a angústia é que provoca as imagens. A angústia fez clic nesta foto desse rapaz do “antes e depois” de sua dieta e seu ano de treinamento. E caíram sobre você seus anos de sobrepeso na escola, voltou o bullying, que na época ainda não se chamava assim. Antonio Sosa te batizando de “leitão” para sempre no recreio da manhã. A risada dos outros. Vinte anos depois, ainda doem. Você é um sujeito magro, e mesmo assim a ferida permanece.

Você dá enter na flecha giratória para atualizar o feed e chegam novas variantes dos seus traumas, feito uma máquina caça-níqueis, que pode te alimentar até a morte. Ataques de animais, operações de nariz que deram errado, problemas de acne... O monstro da sua angústia já quase inflado, adubado, deixado de lado, mas ainda não satisfeito por completo. Falta o golpe de misericórdia. A armadilha está à espreita na foto desta garota de cabelo cacheado. O algoritmo genético dos belos cachos vai te dar a pancada.

Você já clicou antes em uma foto assim e o grande deus digital sabe muito bem disso. Ele volta a te oferecer, com alguma variante. Abre-se um mar de garotas de vinte anos de cabeleira elétrica, belas medusas, reels de possíveis atrizes protagonistas do filme da sua vida, quando partiram o seu coração. Elas são bem parecidas com aquela namorada do último ano do colégio. E já que você está ali, você procura o perfil dela, outra vez, uma vez mais. Lá está. Casada, feliz, com seus cachos presos, na praia, real, rindo, de biquini, sem você, tomando uma cerveja com o marido, abraçando seus dois filhos, todo aquele destino acontecendo diante dos seus olhos na madrugada. Por que você chora? O seu amor ainda está aí, no peito, brilhando intacto.

Tradução de Livia Deorsola

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