Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Modos de dormir

Com duas mulheres entrelacei os meus sonhos e a minha vida inteira

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Pedro Mairal

Esta coreografia lenta de duas pessoas dormindo. Ficam quietas por um tempo, de repente uma se mexe e se mexe a outra, em uníssono. Os corpos sabem, parecem dizer: agora giramos para lá. Passam outro longo tempo imóveis, respirando, e dizem: agora giramos para este outro lado. Dormem e vão adquirindo distintas posturas, compondo cenas mudas. Comunicam-se como sonâmbulos, com ciclos telepáticos.

Dormi com duas mulheres na minha vida, diz Luis. Com duas mulheres entrelacei os meus sonhos e a minha vida inteira. As duas tinham estilos completamente diferentes de dormir e me contagiavam com eles.

Sasint - stock.adobe.com

Uma delas tinha um estilo bastante dramático. Adquiria posturas expressionistas, os cabelos compridos na cara, o corpo em uma torção forçada, a camisola como que tremulando de noite na estepe, um estilo europeu, algo psiquiátrico, um pouco Pina Bausch, um pouco sofredor, digamos, braços estirados em uma mesma direção, com algo de gesto último e desesperado, árvore invernal de galhos arqueados pelo vento, fugindo ou alcançando alguma coisa, imóvel, derrotada e lutando em um lamento mudo. Seu lado B dava um pouco de medo. Ela dormia como uma louca e de dia era a pessoa mais lúcida do mundo. Lógica, e sempre com um sorriso. Eu dormia com ela, arrastado pela correnteza de um pesadelo, o pijama desarrumado, a angústia no peito oblíquo, deslocado. De dia éramos felizes.

Minha outra mulher, ao contrário, estava mais para sesta tropical. Mais terrestre, derramada no peso do calor. Tocando a terra. Seu grande quadril dourado era o protagonista central da cama, ali no meio, feito um pêssego gigante que parecia orgulhar nós dois. Ela dormia como uma leoa voluptuosa, calma, desfeita na paz do reino, nem uma mosca voava, sua coxa sobre a minha coxa, o sono profundo e imperturbável. Ela dormia assim, inocente e serena durante toda a quietude da noite, e de dia era uma mulher atormentada, intratável e temível. Voavam pratos com ataques de choro e barbitúricos mal prescritos. Vivíamos ambos como fios desencapados, sofrendo.

Talvez eu esteja adornando um pouco a história para produzir algum efeito, diz Luis, mas a verdade é que eram mesmo assim meus modos de dormir. Não sei que conclusão tirar, porque eles tampouco tinham correlação com a sexualidade delas, não é que uma fosse fria e a outra quente. Me refiro a algo mais secreto, porque a intimidade sexual não é nada comparado à intimidade do sono. Existe uma confiança tão grande em abandonar-se ao lado do outro, em baixar todas as guardas, estar completamente vulnerável; existe uma entrega aí que não se repete em nenhuma outra circunstância da vida. Algo se imiscui em um nível muito primário quando dormimos com outra pessoa. Algo que não se desata nunca mais, e ainda que essas duas pessoas se separem, ficam os sonhos do outro enredados em nós, em raízes emocionais. Em um divórcio pode-se fazer a divisão de bens, mas não de sonhos. Afinal, os corpos repetiram essas coreografias noite após noite, dois animais respirando juntos, cuidando um do outro, contagiando-se com seus comportamentos involuntários, sincronizando-se. Dois corpos que se alinharam ao espaço da cama, se conjugaram em suas formas, em uma espécie de Tetris de apenas dois blocos. Dois corpos encaixando-se em suas articulações para caber no retângulo do colchão. Joelhos contra joelhos, dois esses grudados como corredores congelados se perseguindo, como nadadores paralelos, como amantes paraquedistas flutuando no sonho, caindo juntos com os olhos fechados.

Tradução de Livia Deorsola

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