Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
Descrição de chapéu Relacionamentos LGBTQIA+

Amor onde menos se espera

O que realmente deveria importar: amar uns aos outros

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Milly Lacombe

O carro começou a dar sinais de que iria morrer quando estávamos na estrada, a duas horas de casa. Anoitecia e a ideia de ficar parada no meio de uma estrada que eu não conhecia me apavorou. Não disse nada a minha mulher, sentada ao lado. Puxei conversa a fim de tirar a mente da constatação de que alguma coisa estava errada com aquele veículo.

Anoiteceu, a estrada ficou um pouco mais sombria. Rodovia de mão dupla, vicinal, sem tráfego. Não sabia exatamente onde estava, mas o aplicativo de navegação indicava que não havia uma cidade tão perto assim. E então, numa pequena serra, bem na curva, o carro morreu.

"O que houve?", quis saber minha mulher. Eu não fazia ideia. Com dificuldade, consegui jogar o carro para o lado porque não tinha acostamento. Liguei o pisca-alerta, meu coração estava disparado. "O que vamos fazer?", minha mulher quis saber, agora também ela nervosa. Dois cachorros, três malas, nenhuma ideia na cabeça.

Ilustração de duas mulheres se beijando
Patricia Román por Pixabay

"Vou ligar para a seguradora", eu disse. E então percebi que não havia sinal. "Essa região não é das mais tranquilas", minha mulher me explicou antes de me avisar que ia a pé atrás de ajuda, que eu ficasse no carro para o caso de alguém parar. Não sabia de verdade se seria muito bom ou muito ruim que alguém parasse.

Ela saiu correndo pela estrada escura. Cinco minutos passados, meu pânico aumentou. Não devia ter deixado ela ir. Tínhamos que ficar juntas, não separadas. Prometi em voz alta e mantricamente que nunca mais deixaria que ela saísse de perto de mim. Depois de uns vinte minutos, vi a silhueta de minha mulher correndo. Ela teria conseguido ajuda? Estava sozinha, o que me fez acreditar que a resposta era "não".

Antes que ela pudesse me alcançar, um carro que vinha na direção contrária fez um desvio abrupto e parou perto do meu. Dele, desceu um homem. De imediato, pensei para onde poderíamos correr. Corpos masculinos, especialmente numa situação como aquela, indicam perigo. "Vimos uma mulher correndo na estrada, era você?", o homem quis saber. "Era minha mulher", eu disse sem pensar, e já sendo inundada por mais medo imaginando que a revelação despertasse qualquer tipo de homofobia.

Nessa hora, a porta do passageiro do carro dele foi aberta e um corpo feminino desceu. Respirei aliviada. Minha mulher finalmente nos alcançou. O casal tinha parado para ver se precisávamos de ajuda. Voltavam do culto. A filha estava no carro e eles disseram que nos levariam até um posto, que nos ajudariam.

Pelas próximas duas horas, foi tudo o que fizeram. Entramos no carro deles, nós duas e as cachorras. As músicas no rádio falavam de Jesus, uma atrás da outra. Eram evangélicos. Dali a algumas horas estariam acordando para mais uma semana de seis, sete dias de trabalho. Mas não nos deixaram até que estivéssemos dentro do guincho.

Pediram que aviássemos quando chegássemos ao Rio. Chegaríamos tarde, explicamos. Ainda assim, eles insistiram. Ficaremos esperando, disseram. Chegamos em casa e enviamos uma mensagem. Eles agradeceram e se despediram com "fiquem com Deus".

Sentamos à mesa, abrimos um vinho e foi nesse momento que eu comecei a chorar. Não por medo, não por desespero, não por tristeza. Chorei porque não há no mundo sentimento mais potente do que se sentir acolhida, cuidada, amparada. Chorei porque havíamos sido socorridas por aquele outro que dizem que nos odeia, ou que devíamos odiar. Chorei porque um episódio que poderia ter sido trágico acabou me ensinando sobre o que realmente deveria importar: amar uns aos outros. Amar ao outro como a ti mesmo. Amar o outro porque é tu mesmo.

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