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Pandemia e novo normal: o lucro e a morte acima da vida

Movimento é de preservação do capital e em detrimento da vida do ser humano

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Por Lucas Obalera

"Se e quando uma pessoa tiver de enfrentar uma escolha decisiva entre a riqueza e a preservação da vida de outro ser humano, deve sempre optar pela preservação da vida." (Aforismo que traduz um das referências basilares da noção filosófica política de Ubuntu)

Desde o surgimento da pandemia, convivemos com notícias diárias sobre um número crescente de infectados e mortes causadas pela Covid-19, no Brasil e no mundo. Cenas de caixões enterrados coletivamente e de famílias sem a possibilidade de se despedir de seus entes queridos ocuparam nosso imaginário. Paralelo a isso, surgia uma enorme preocupação em torno da economia, uma vez que a Organização Mundial da Saúde determinou que a medida mais eficaz contra a Covid-19 seria o isolamento social. "Fique em casa" tornou-se um slogan no mundo.

Com o passar dos dias e das semanas no período da quarentena, crescia o meu incômodo ao acompanhar como as mortes de pessoas, em diversos níveis e formas, explícita ou implicitamente, eram negligenciadas de algum modo em nome da lucratividade do mercado. Em outras palavras, havia um movimento de preservação do capital em detrimento a vida do ser humano.

No contexto brasileiro, certamente um dos exemplos dessa mentalidade assassina é o processo de flexibilização do isolamento social num momento que nos tornamos um dos epicentros da pandemia. Já somamos mais de 117 mil óbitos registrados, com uma média aproximada de mil mortes por dia e mais de 3,7 milhões de pessoas diagnosticadas com Covid. Apesar dos dados alarmantes, as notícias de abertura de shopping center, centros comerciais, discussões entre governantes e empresários de como fazer com que a economia volte a funcionar tem crescido mais e mais.

Esse cenário, com suas mortes, adoecimentos, isolamentos, exposições e incertezas sobre o amanhã, tem escancarado dinâmicas sociais outrora encobertas e/ou perversamente naturalizadas, como as desigualdades raciais-sociais abissais e históricas. A banalização da vida humana em oposição a uma hipervalorização do dinheiro ganha seu próprio holofote.

Não há dúvidas de que a crítica realizada pelo filósofo sul-africano Mogobe Ramose, a partir da filosofia africana ubuntu, acerca da experiência da globalização, do sistema econômico-político capitalista e a compreensão ocidental sobre o mundo —no texto "Globalização Ubuntu"— tornam-se mais evidentes.

Segundo Ramose, nessa estrutura e organização de pensamento baseada na ânsia pela lucratividade a qualquer custo, o dinheiro deixou de ser um meio para se conquistar algo e passou a ser um fim em si mesmo. Nesse sentido, para o autor, “o mercado é o poder financeiro que sustenta a contração do espaço, do tempo e da política, não lhes importando possíveis consequências humanas e ambientais. A obtenção de lucros irrestritos é sua principal meta”.

A subordinação do direito humano à vida a produção de lucros ganha contornos ainda mais expressivos no que tem se chamado de “novo normal”. A maximização do dinheiro se escancara como soberana. É a morte governando a vida. E, nesse sentido, é inevitável não lembrar da afirmativa “somos piores que o covid-19”, feita por Ailton Krenak, importante liderança indígena, em seu recente livro "O Amanhã Não Está à Venda".

Krenak pontua como há um certo “pacote de humanidade” que vive numa “abstração civilizatória, que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”.

A subtração de vidas negras e indígenas e a naturalização e o estímulo de nossas mortes sempre foram a tônica desse sistema-mundo moderno e racista. O coronavírus está aí para reiterar essa realidade. Somos a maioria dos que são contaminados e morrem. Não porque tenhamos alguma predisposição biológica ao vírus, mas tão somente pelas condições raciais-sociais extremamente desiguais.

Nesse caminhar é necessário pontuar também a reflexão do intelectual Silvio Almeida. A certa altura de sua obra "Racismo Estrutural", ele explica que, para essa fase do capitalismo pós-fordista e a política neoliberal vigente, manter a “continuidade das formas fundamentais da vida socioeconômica depende da morte e do encarceramento”. E conclui: “A justificação da morte em nome dos riscos à economia e a segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade”.

Dentro deste padrão de civilidade ocidental, em que o racismo é a estrutura sistêmica definidora das relações sociais, políticas, econômicas e culturais, a morte sistemática de pessoas é a regra —isto a partir da experiência vivida de negros e indígenas. O “novo normal” tem sido reflexo de uma sociedade baseada em sangue, morte e sofrimento e que, portanto, apesar dos milhares de óbitos decorrentes da Covid, ainda insiste em escolher a riqueza, e não a preservação da vida. Nem mesmo uma pandemia generalizada parece ser capaz de comprometer a racionalidade deste sistema-mundo antinegro, anti-humano.

Um outro mundo é possível?!


Lucas Obalera é homem negro de Candomblé, morador de São João de Meriti, Baixada Fluminense. Cientista social formado pela PUC-Rio, escritor e pesquisador-ativista na área de relações raciais, é colunista da revista Kobá e da comunidade Ataré Palavra Terapia. Em 2019, publicou o e-book “Por uma perspectiva afrorreligiosa: estratégias de enfrentamento ao racismo religioso”, publicado pela Fundação Heinrich Böll.

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