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13 de maio e a perseguição às religiões de matriz africana

Violências direcionadas aos terreiros são expressão dos tempos do cativeiro no presente

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Lucas Obalerá

Homem negro de candomblé, filho de Omolu. Cientista social pela PUC-Rio e mestrando em filosofia na UFRRJ, é pesquisador-ativista na área de relações raciais, direitos humanos, filosofia africana e de terreiro

"Vovó não quer casca de coco no terreiro. Para não lembrar os tempos do cativeiro". Com esse ponto cantado pelas umbandas e rodas de jongo, eu saravo aos pretos e pretas-velhas, vovós e vovôs em referência ao 13 de maio. Adorei as almas!

Mas esta data também é ainda mais conhecida oficialmente como Dia da Abolição da Escravatura no Brasil, último país das Américas a realizá-la, em 1888. Entretanto, sabemos (ou deveríamos saber) que essa abolição segue como uma farsa.

Recordo que, no centenário da abolição, o movimento negro organizou a "marcha contra a falsa abolição", levando milhares de pessoas negras às ruas no centro do Rio de Janeiro em 11 de maio de 1988. Lembro também do samba-enredo da Mangueira levado à avenida naquele mesmo ano: "será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão? [...] Pergunte ao criador, pergunte ao criador quem pintou esta aquarela. Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela".

No batucar desta gira de palavras, o 13 de maio nos permite celebrar nossa ancestralidade por meio do culto aos pretos e pretas-velhas, e ao mesmo tempo denunciar que, mesmo 135 anos depois de decretado o fim da escravidão, o "terreiro-mundo" segue repleto de "casca de coco". 135 anos se passaram e os tempos do cativeiro insistem em se manifestar, ora de forma escamoteada, ora escancarada, no hoje, no agora.



No cantar baixo e sereno de nossas pretas-velhas, sob o mascar do fumo e o baforar do seu pito, pérolas de sabedoria são ditas, entoadas e sentidas. E esse embalar de vovó e vovô que fala de casca de coco e terreiro, uma metáfora da vida de sofrimento e todo tipo de violência colonial-escravista, me faz reportar a violência direcionada às religiões de matriz africana, os nossos terreiros-quilombo de ontem e hoje.

As cascas de coco ainda marcam nossos terreiros de candomblé, umbanda, tambor de mina, batuque, jurema, etc. Isto é, as múltiplas violências direcionadas aos terreiros e aos vivenciadores dessas tradições culturais-religiosas são a expressão dos tempos do cativeiro no presente. Um passado que se presentifica.

Além da intolerância

"Filhos do demônio"; "Cultos afro-brasileiros não constituem uma religião"; "Aluno é barrado em escola por usar guias de candomblé"; "Mãe perde a guarda da filha após iniciá-la no candomblé". Essas são algumas manchetes de casos que materializam o cenário histórico de agressão e perseguição aos terreiros.

Além das violências em supermercados, ônibus, hospitais, locais de trabalho e dos casos de depredação e incêndio em terreiros, as mortes de ialorixás em decorrência de agressões por motivação religiosa nos dão o tom da gravidade do que compreendo como racismo religioso, e não apenas como intolerância religiosa.

Essa afirmativa é importante por vários motivos, dentre os quais a necessidade de se racializar o debate sobre intolerância religiosa no Brasil. Compreender as agressões aos povos e comunidades de terreiro dentro da chave do racismo religioso nos conecta de maneira mais intensa e profunda aos debates suscitados em torno do 13 de maio. Ele nos coloca diante do mundo colonial-escravista que a gente herdou e que ainda hoje não deixou de produzir seus tentáculos nas diversas esferas sociais.

Segundo pesquisa sobre o racismo religioso no Brasil realizada em 2022 pela Renafro (Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras), mais de 90% das 255 lideranças de terreiro consultadas informaram que ouvem regularmente suas filhas e filhos de santo relatarem que sofreram alguma forma de violência por motivação religiosa.



135 anos e a mentalidade dos tempos do cativeiro —que demoniza e desumaniza, persegue, encarcera e visa matar pessoas e culturas negras— continua presente e criando formas de se atualizar. Abolição para quem?

Assim como nossos ancestrais lutaram, resistiram e criaram formas de se manterem vivos durante a escravidão e o pós-escravidão, nós seguimos esse legado. As comunidades-terreiro de ontem e de hoje seguem preservando e transmitindo aos seus toda a herança cultural, filosófica, espiritual e política negro-africana. Enquanto alvos da violência, continuamos criando nossas próprias análises, interpretações e estratégias de enfrentamento ao racismo religioso. Os terreiros reafirmam seus modos de ser, existir e sentir inventando formas de re-encantar esse mundo em completo desencanto.

Que os pretos e pretas-velhas, que as santas almas, que todos os nossos ancestrais nos concedam força, sabedoria, orientações, acalanto e ervas de encanamento para que efetivamente não haja mais nenhuma casca de coco no terreiro, e assim a verdadeira abolição se concretize!

"Vovó não quer casca de coco no terreiro. Para não lembrar os tempos do cativeiro."

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