A ministra Simone Tebet disse, em entrevista recente, que agora o Banco Central não teria mais desculpas para não reduzir a taxa de juros. No entanto, essa fala, justamente, apresenta um motivo para tal.
Na Odisseia de Homero, ao voltar para casa numa longa viagem de dez anos, Ulisses e tripulação passam por uma zona habitada por sereias, cujo canto é belo, mas fatal. Ulisses quer ouvi-lo, mas não quer morrer; a solução para o dilema é amarrar-se ao mastro, para que assim a tentação de jogar-se ao mar não se materialize. Aos marujos, a receita é cera no ouvido (vejam como a desigualdade de renda já era importante e ultrajante naquela época!).
Daí a expressão "amarrar as próprias mãos", que se não entrou propriamente para o cânone literário, faz um tremendo sucesso nos textos de economia ao menos desde 1983, ano de publicação de "Rules, Discretion and Reputation in a Model of Monetary Policy", artigo sobre a inconsistência temporal da política monetária escrito por Robert Barro e David B. Gordon, economistas famosos até hoje.
A tentação da política monetária consiste em prometer taxas baixas de inflação, mas sem entregá-las a posteriori. Por quê? Porque uma vez que os agentes econômicos formem suas expectativas sobre os preços e estas sejam embutidas nos salários, nos aluguéis e nas taxas de juros, o governo pode pressionar a autoridade monetária a surpreender um pouco para cima, deixando a inflação mais frouxa. Isso no curto prazo gera queda da dívida pública (porque os juros reais são menores), aumento do investimento e aumento do emprego (porque os salários reais são menores).
Ou seja, com a frouxidão do Banco Central pode se dar uma pequena eclosão de crescimento. Mas é voo de galinha. Curto. As pessoas aprendem a artimanha e aí o que ocorre é o pior dos mundos, a soma de todos os medos! A economia termina com inflação mais elevada e nem o voo de galinha ocorre. Daí a necessidade de algum expediente à la Ulisses.
Na maioria dos países que enfrentaram inflações altas por conta de políticas monetárias tortas, a solução radical e eficiente foi abrir mão completamente delas. O sujeito adota o dólar, o marco alemão, o euro, direta ou indiretamente por meio da fixação da taxa de câmbio numa paridade imutável. A inflação morre de fome, desaparece. Mas é um remédio extremo, e os efeitos colaterais logo aparecem: com a taxa de câmbio fixa, os déficits externos crescem e podem se tornar insustentáveis, por exemplo.
Outra possibilidade adotada com sucesso por diversos países mundo afora, é isolar o Banco Central de pressões vindas da política, concedendo-lhe independência operacional. Não de objetivos, mas em termos de não interferência na tarefa de persegui-los. E dar-lhe um mandato claro, e cobrar que ele o cumpra.
Quem estabelece esses objetivos não é o Banco Central, mas o Parlamento ou o Executivo, democraticamente eleitos. Com esse arranjo, que obviamente pode variar em detalhes de implementação de país para país, o problema da tentação é controlado, a inflação se ancora em patamares baixos na maior parte do tempo e todos (com a possível exceção de políticos oportunistas) ganham.
Diversos membros do governo e do partido do governo vêm achacando o Banco Central brasileiro, numa pressão nunca vista na história da República, pela redução imediata da taxa de juros. Isso é interferir na independência operacional. É desatar o nó que impede Ulisses de se jogar no mar e encontrar a própria morte.
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