Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade

Copa de raça: os "quase brancos" brasileiros e os "negros" europeus

"Tá faltando negão no time do Brasil e sobrando em seleção que antes só tinha branquelo perna de pau", diz o motorista de táxi que, perigosamente, dirige sem desgrudar os olhos da TV que deveria servir apenas de GPS, enquanto acompanha o festival de gols de França x Suíça.

Sem se preocupar em ser politicamente correto na fala e ao volante, ele traduz o que salta aos olhos dos espectadores da Copa de 2014: o futebol se converteu na melhor tradução de um mundo sem fronteiras, que embaralha conceitos como nacionalidade e raça.

Com mais ou menos "estrangeiros" em campo, várias seleções europeias como Alemanha, Bélgica, Inglaterra e Suíça começam a refletir uma diversidade étnica digna de países mestiços como o Brasil. Um anfitrião que forjou seu "futebol-arte" no caldeirão de raças e culturas que produziu talentos entre negros, como Pelé, e descendentes de europeus, como Zico.

MULTICULTURAL

A goleada de 5 a 2 da França sobre a Suíça na sexta-feira passada dá bem a medida da constatação do taxista. Três dos gols franceses foram marcados por filhos de imigrantes: Blaise Matuidi (Angola), Moussa Sissoko (Mali) e Karim Benzema (Argélia), uma das estrelas dos "Les Bleus", que honra a tradição de Zinedine Zidane, outro craque de origem argelina, que garantiu à França o título mundial em 1998.

Aquela seleção "negra, branca e azul", como ficou conhecida, já traduzia em campo há 16 anos uma nação multiétnica. Um novo perfil que suscitou reações de líderes políticos, como Jean-Marie Le Pen, da xenófoba Frente Nacional. A chiadeira era de que "havia negros demais" e falou-se até em criar cota limite para "estrangeiros" na seleção nacional.

A ideia não vingou e hoje se assiste a cada início de partida do Mundial entoarem "A Marselhesa" lado a lado Olivier Ginoud, 100% francês, Mamadou Skho, do Zaire (antigo Congo), e Patrice Evra, do Senegal: "Avante, filhos da Pátria/O dia de glória chegou.... Marchemos, marchemos!/Que um sangue impuro/ Ague o nosso arado", entoam a plenos pulmões brancos e negros, colonizador e colonizados. Um coro que também deve soar com estranheza entre os pais de jogadores que trazem na memória as dores de conflitos e misérias de um passado colonial.

O mesmo colorido se vê na escalação da Suíça, que se configura em campo como uma espécie de ONU (Organização das Nações Unidas) de calção e chuteiras. Uma das estrelas do time é Xhorden Shaqri, nascido no Kosovo, cujos pais fugiram da guerra dos Balcãs nos anos 1990. O capitão do time é o turco Intel. Dos 30 convocados em 2013 para o Mundial, 17 eram de origem estrangeira, incluindo filhos de imigrantes curdos, cabo-verdianos e bósnios, além de jogadores nascidos na Colômbia e na Nigéria.

EXTRACOMUNITÁRIOS

O fenômeno em campo é resultado do êxodo de refugiados de conflitos recentes e de migração em massa de ex-colônias africanas rumo à rica União Europeia. Com uma população de 82 milhões de habitantes, a Alemanha tem hoje 19% de habitantes de origem extracomunitária ou do Leste Europeu, segundo o departamento federal de estatísticas. Além de Miroslav Klose e Lukas Poldoski, poloneses naturalizados alemães, o time nacional conta com um jogador filho de imigrantes turcos, Mesut Özil, representante da comunidade estrangeira mais numerosa do país, e outro de pai tunisiano e mãe alemã, Sami Khedira.

Mais do que direito de sangue ou de ter nascido em determinado território, nacionalidade virou escolha para os habitantes talentosos do planeta bola. Sinal dos novos tempos é o fato de o zagueiro da Alemanha, Jérôme Boateng, de origem ganesa, ter entrando em campo contra o meio-irmão Kevin-Prince Boateng, que optou por defender Gana, no empate entre as duas seleções.

FILHOS DA PÁTRIA

Na contramão da festa multiétnica em campo, há o crescimento da xenofobia em tempos de crise econômica em todo o continente e a pressão por fechar as fronteiras para novas levas de migrantes.

O parlamento suíço, por exemplo, aprovou em fevereiro uma medida contra imigração em massa, quando 50,3% dos eleitores votaram a favor de cotas anuais de vistos.

RACISMO NOS ESTÁDIOS

Os gritos de gol ainda não têm sido eficazes para calar o racismo em estádios lotados de paixões e rivalidades. Vide as bananas lançadas para insultar jogadores negros chamados de macacos por torcedores rivais.

O artilheiro de ébano da Itália, Marco Balotelli, o terceiro negro a envergar a camisa da "Azzura", já foi retratado como um King Kong por um jornal esportivo local. E o brasileiro Daniel Alves, que se defrontou com o racismo não velado além-mar, comeu a banana lançada em campo pelo adversário.

Nesse caldeirão, o "branqueamento" recente da seleção brasileira é constatado pelo taxista gaúcho, que se define como "chocolate branco". "Se tomo sol fico preto como meu irmão", conta o senhor, descendente de italianos e nordestinos ("Aí complica, tem de tudo lá pra cima").

Na elasticidade de definições da própria cor em um país que pratica miscigenação desde o seu nascedouro, Neymar, por exemplo, não chega a se definir como negro. No entanto, foram autênticos representantes da raça como Pelé e Garrincha que converteram a seleção brasileira em uma máquina saudada até hoje como o melhor futebol da história.

Vetado aos negros nos primeiros anos em terras brasileiras, o esporte bretão só se tornou arte quando se assumiu mestiço.

As equipes brasileiras levaram décadas para aceitar jogadores de cor em seus times. Para entrar em campo, os mais escuros tinham que passar pó de arroz e esconder os cabelos crespos. Hoje, o estilo "black power" de negro Marcelo e do branco David Luiz é sucesso na Copa das Copas.

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