Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade

Multa de R$ 278 mil, aplicativo e policial robô controlam Covid-19 no Catar

Engenheiro brasileiro relata rotina de isolamento e rastreamento virtual no emirado do Oriente Médio que registrava 57 mortes na pandemia até o domingo (7)

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Funcionário de uma empresa petrolífera no Catar e casado com uma francesa, o brasileiro Rogério Monteiro, 55, vive a realidade de distanciamento social imposta pelo coronavírus entre a capital Doha e a ilha de Halul, de olho no desenrolar da pandemia na França, onde mora a família, e no Brasil.

Com residência fixa no emirado, onde passa pelo menos seis meses do ano, ele foi obrigado há duas semanas a baixar um aplicativo de rastreamento no celular, o Ehteraz (Precaução, em árabe).

O dispositivo oficial passou a controlar os passos e o status sanitário dos 2,3 milhões de habitantes do país que vai ser a sede da Copa do Mundo de 2022.

“Meu QR Code [código de barras que pode ser lido pela câmera de um celular] tem status verde, sinalizando que não tenho Covid-19, mas se eu me aproximar a menos de dois metros de alguém que seja vermelho, passo a ser cinza, entro no rol de suspeitos”, explica o brasileiro.

Para entrar em um dos shopping centers já reaberto em parte, por exemplo, é preciso apresentar na entrada o celular com o status verde.

O distanciamento social adotado no país é flexível, os moradores podem circular, mas as regras são rígidas: o uso de máscara e do app é obrigatório, aglomerações são proibidas e o descumprimento acarreta multa de até US$ 55 mil (cerca de R$ 278 mil).

Com um PIB per capita de US$ 130.475, graças às grandes reservas de petróleo e gás que fazem do Catar o país mais rico do mundo, no domingo (7), o emirado registrava 70.158 casos positivos de Covid-19 e 57 mortes, segundo a notificação oficial recebida diariamente pelo aplicativo.

Rogério fez o teste em maio, quando se somou aos 259.646 moradores testados, quase 10% da população, o que coloca o país na liderança do número de casos por milhão no mundo.

A população do Catar é formada em sua maioria por estrangeiros. São cerca de 300 mil catarianos, enquanto imigrantes indianos chegam a 700 mil, a maior parte deles de trabalhadores da construção civil.

A estratégica de controle da pandemia no país que é uma monarquia absolutista está calcada em tecnologia. Pelas zonas turísticas da moderna capital, policiais robôs fazem o patrulhamento das ruas. Dão informes sobre a pandemia e alertam para as pesadas multas em árabe e inglês.

O sistema de rastreamento populacional por celular é inspirado em modelos implantados com sucesso em Singapura e na Coréia do Sul. “Só que no Catar foram mais longe com um aplicativo questionado por invadir a privacidade e restringir liberdades individuais”, afirma Monteiro.

Baixar o aplicativo obrigatório e aceitar os Termos e Condições de uso é como assinar um cheque em branco para as autoridades do emirado.

"O Ministério se reserva o direito de alterar, modificar ou impor novas condições a qualquer momento, sem qualquer notificação”, diz o texto de apresentação do app. Ao dar o ok para finalizar o download, o usuário vai permitir o acesso aos dados do celular, lista de contatos, histórico de testes e todos os deslocamentos.

Obrigatório para quem precisa sair de sua residência, caso o morador seja parado pela polícia e não esteja com o aplicativo ativo está sujeito a até três anos de prisão, além da pesada multa.

Entidades como Anistia Internacional e Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos) questionam os limites do app de rastreamento no esforço de controlar a disseminação da Covid-19, alertando para violação de privacidade e questões de segurança.

O governo declarou que tem acesso limitado a dados pessoais e que aqueles coletados, como histórico médico, serão excluídos após dois meses.

O brasileiro ainda está se adaptando a esse “Big Brother da pandemia”. “Não tenho escolha, mas é assustador saber que o governo tem acesso a todos os meus contatos, minha fotos e vídeos e pode até fazer uma ligação à distância a partir do meu celular.”

É uma medida de proteção, diz ele, assim como as tomadas em todo o mundo pós-atentados do 11 de Setembro. “Nossas liberdades estão ameaçadas de novo. Perdemos muito por causa do terrorismo e agora vamos perder mais com a bandeira da saúde.”

Monteiro teme que as liberdades individuais se tornem ainda mais restritas em países com regras democráticas pouco claras.

Ele compara diariamente a realidade da pandemia no Catar com aquela na Europa, especialmente no sul da França onde vivem a mulher e os dois filhos, de 23 e 21 anos.

Desde o Réveillon, o brasileiro não retorna para a casa. A mulher, Pascale, o visitou em Doha em fevereiro. A crise sanitária impediu a viagem dele programada para rever os filhos em abril.

Em 20 de junho, Monteiro pretende sair de férias e passar o verão europeu com a família, a depender de autorização para sair do Oriente Médio e também para entrar na França.

Com mais de 28 mil mortes contabilizadas, a situação do país onde cria os filhos o preocupa, mas Monteiro elogia a forma como as autoridades francesas têm conduzido a crise.

“Há uma linha coerente do presidente ao prefeito, e uma mensagem clara de que todo mundo tem de ficar em casa, recebendo 88% do salário. Quando comparo com o Brasil, me dói ver a nossa situação.”

O noticiário no Catar tem dado destaque à escalada da Covid-19 em terras brasileiras e às polêmicas envolvendo o presidente Jair Bolsonaro.

“A televisão daqui mostra Bolsonaro todos os dias. Assisto para ver se aparece alguma solução para o caos que se aproxima no país. Mas o que vemos é o presidente no meio do povo, sem máscara, uma imagem calamitosa do Brasil.”

Durante a quarentena, o engenheiro nascido em Jaguaquara, na Bahia, conta que vai dormir tarde para acompanhar o noticiário nacional.

“Sigo com muito tristeza a situação causada por esse desgoverno”, lamenta Monteiro, que esteve no Brasil pela última vez em 2015.

Ele se diz angustiado ao acompanhar de longe e protegido a “gripezinha” vitimar mais de 30 mil brasileiros, enquanto se anuncia reabertura de parte do comércio e medidas de flexibilização do distanciamento social em meio ao colapso no sistema público de saúde.

“No Catar, obrigatoriedade do uso da máscara é recente, mas no começo da pandemia todas as empresas e indústrias não essenciais foram fechadas, até mesmo as de petróleo e gás, que são fundamentais para a economia do país”, compara.

Com exceção dos serviços essenciais, o comércio permanece fechado até mesmo o tradicional souq, o mercado árabe, assim como as mesquitas, mesmo durante o Ramadã.

Desde 7 de abril, o engenheiro de produção passou a trabalhar em home office, mesmo morando em um apart-hotel a 200 metros do trabalho, a sede local da Total, companhia petrolífera francesa.

Engenheiro de controle e automação, Monteiro só se deslocou de helicópetero da capital até a ilha de Halul, para trabalhar parte do período de quarentena a partir do terminal petroleiro ligado a diversas plataformas.

Antes de embarcar para a viagem de 35 minutos rumo a ilha que não registra nenhum caso de Covid-19, ele teve o resultado negativo do teste de coronavírus.

Na França, um cunhado de Monteiro foi infectado pelo novo coronavírus logo no começo da pandemia. “Foi antes de ser decretado o confinamento, mas correu tudo bem."

A letalidade da doença chegou mais perto do brasileiro com a morte de um colega de trabalho, que morava na Espanha e faleceu vítima da Covid-19 aos 59 anos.

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