Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

Achados arqueológicos lançam nova luz sobre o horror da crucificação no Império Romano

Evidência mostra que pessoas eram crucificadas nuas e de pernas abertas; a intenção era expor ao máximo o crucificado, tanto ao escárnio público quanto a aves de rapina

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

É preciso um esforço tremendo de imaginação para que um ser humano do século 21 seja capaz de compreender plenamente o que significava ser crucificado 2.000 anos atrás. Não me refiro aos aspectos físicos do procedimento, embora eles sejam importantíssimos, é claro.

Falo, em primeiro lugar, dos elementos simbólicos que estão por trás do ato de dar cabo de uma pessoa precisamente daquele jeito. Os milênios de cultura cristã, que transformaram a cruz em ícone ou mesmo adorno, embotaram nossa sensibilidade a esse respeito de modo quase irremediável.

Descobertas feitas por arqueólogos, porém, às vezes têm a capacidade de ressuscitar o passado com vividez, quando analisadas com o devido cuidado. Evidências arqueológicas diretas sobre a prática da crucificação são raríssimas —um aparente paradoxo quando se considera que as fontes da Antiguidade mencionam ocasiões nas quais o suplício foi aplicado a milhares de vítimas ao mesmo tempo.

Apesar disso, chegaram até nós apenas dois esqueletos de pessoas cuja morte na cruz pode ser demonstrada de forma cabal. E as semelhanças entre esses casos ajudam a revelar parte do verdadeiro horror por trás dessa forma de execução.

Pessoa segura réplica de osso
Réplica de osso do calcanhar com um prego de aço; acredita-se que o osso pertença a Yehohanan ben Hagkol, o que seria uma evidência de execução por crucificação na época de Jesus - 19.mar.2017 - Amir Cohen/Reuters

Conhecemos o nome de um desses crucificados: Yehohanan ben Hagkol (João, filho de Agcol), homem de origem judaica que morreu em algum momento do século 1º d.C. Um ossuário (caixa usada para abrigar ossos humanos em sepulturas) contendo seu nome e seus restos mortais foi achado em Jerusalém em 1968. A segunda vítima, desta vez anônima, foi identificada no fim de 2021 numa escavação perto de Cambridge, no Reino Unido. Também do sexo masculino, o supliciado morreu entre os séculos 3º d.C. e 4º d.C.

A pista-chave, nos dois casos, foi a presença de pregos nos ossos dos pés dos homens. A posição exata dos cravos, porém, é ainda mais reveladora. Em ambas as vítimas, os pregos atravessam o osso do calcanhar na horizontal.

Isso significa que, muito provavelmente, o certo é imaginá-los de pernas abertas, com um pé preso de cada lado da barra vertical da cruz, e não com um pé apoiado em cima do outro, como na representação usual dos crucifixos e da arte sacra ocidental.

Agora, considere que os sentenciados estavam nus —a tanga ou faixa de pano que vemos nas imagens de Cristo crucificado é só uma concessão ao pudor dos fiéis. A intenção era expor ao máximo o corpo do crucificado, tanto ao escárnio público quanto a aves de rapina (as quais, segundo os relatos da época, vinham bicar tanto os genitais quanto os olhos).

É preciso ainda somar a isso o terror de uma morte lenta, provocada por choque, perda de sangue e asfixia progressiva, e o fato de que, muitas vezes, o corpo não era sepultado, mas deixado na cruz para apodrecer. Isso explica, em parte, porque encontramos tão poucos crucificados (além disso, há o fato de que a maioria dos pregos parece ter sido arrancada do corpo e reutilizada depois).

E há, é claro, o estigma social. Os romanos chamavam a crucificação de "suplício servil": destinado aos escravos, aos ladrões de beira de estrada, aos rebeldes pé-de-chinelo.

Poucas ideias são mais radicais, desse ponto de vista, do que a divinização de Jesus crucificado. Ela vira do avesso a visão do lugar e das pessoas com os quais Deus se identifica, um desafio às formas de poder que permitem a existência desse tipo de crueldade como algo natural.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.