Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu yanomami

Família das línguas yanomamis tem distinções sutis

Idiomas da família yanomami compartilham com várias outras línguas indígenas sul-americanas as estruturas que definem a chamada evidencialidade

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São Paulo

Os yanomamis não falam uma língua única, mas uma família de seis idiomas aparentados entre si, que talvez tenham começado a divergir entre si há cerca de um milênio.

Não há pistas claras sobre o parentesco entre a pequena família linguística yanomami e os demais falares nativos da América do Sul. É como se o basco, célebre por ser a única língua isolada na Europa atual, ainda estivesse acompanhado de alguns "primos" em meio a um mar de outros idiomas.

No registro de 2020, membro da tribo yanomami foram vistos no Pelotão Especial de Fronteira, onde foram levados testes para Covid-19 para uma área indígena de Roraima
No registro de 2020, membro da tribo yanomami foram vistos no Pelotão Especial de Fronteira, onde foram levados testes para Covid-19 para uma área indígena de Roraima - Nelson Almeida/AFP

Basta examinar alguns detalhes do funcionamento de uma dessas línguas para perceber que as coisas que consideramos completamente naturais no português ou em outros idiomas europeus podem ser apenas acidentes históricos.

Nenhuma pessoa capaz de ler esse texto, por exemplo, precisa fazer um esforço consciente para montar frases seguindo a lógica SVO –sujeito + verbo + objeto, como em "O menino beijou a mãe". No entanto, em sanöma, língua yanomami com cerca de 5.000 falantes, o normal é dizer "Wanotönö öla asäpalöma", "O homem a onça matou". Sabemos que quem morreu foi o felino da história, e não o humano, porque estamos falando de uma língua do tipo SOV.

Justamente por ser uma língua dita "de verbo final", o sanöma não tem preposições –a célebre lista que começa com "a, ante, após, até" –como o português. Originalmente muito usadas com sentido espacial, elas são literalmente "pré-posições" por vir antes de um substantivo, por exemplo, como na frase "Fui até a casa".

No idioma da família yanomami, porém, o que temos são posposições – ou, se você me permite mais um desdobramento didático da palavra, "pós-posições", já que elas aparecem depois. Para contar que vive em Boa Vista, o falante do sanöma diz "Boa Vista hamö sapilia" – literalmente, "Boa Vista em moro". Da mesma maneira, o possuidor de um objeto aparece antes desse objeto na frase –em vez de "o cesto da mulher", o fraseado é "mulher dela esse cesto".

Apesar de seu aparente isolamento, os idiomas da família yanomami compartilham com várias outras línguas indígenas sul-americanas as estruturas que definem a chamada evidencialidade. Ou seja, o que os falantes usam para explicitar de onde tiraram as evidências sobre aquilo de que estão falando. Se uma afirmação termina com "ki-pi", por exemplo, trata-se de uma indicação de que o falante presenciou aquele fato no passado distante.

Se ele usa "tha-pi" na mesma posição, trata-se de um dado de que ele ouviu falar sobre esse passado, sem ter visto aquilo pessoalmente. Por fim, "noa" no final da frase corresponde a uma inferência lógica. "Wa sanömo noa" = "(Parece que) você tomou banho" (porque seus cabelos estão molhados, por exemplo).

Há ainda a possibilidade de fazer afirmações neutras, sem o uso dos chamados evidenciais. O curioso é que relatos sobre mitos e eventos históricos muito antigos assumem essa forma. A terminação que indicaria algo que não foi testemunhado pelo falante, que ele só conhece de ouvir dizer, não é empregada nesses casos, talvez para não indicar que tais relatos seriam necessariamente menos confiáveis.

Há quem não veja problema quando o rolo compressor de línguas imperiais –e sim, o português é uma delas– esmaga pequenas joias como as que descrevi acima. Há quem ache que basta publicar uma gramática e gravar alguns cantos. Por que diabos os netos dos atuais yanomamis precisariam saber usar uma posposição? O resultado desse tipo de pensamento é sempre o mesmo: crianças que viraram só pele e osso, voçorocas onde havia floresta.

PS: Os dados citados nesta coluna vêm do capítulo "O valor da informação na língua sanöma", escrito por Joana Autuori e Helder Ferreira para o livro "Índio Não Fala Só Tupi". A organização da obra é de Bruna Franchetto e Kristina Balykova.

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