Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu África

Cleópatra e as cores do Egito

Cleópatra não era negra, mas isso não apaga herança africana do Egito

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Era previsível que a escolha de uma atriz negra (a britânica Adele James) para interpretar Cleópatra numa minissérie da Netflix fosse provocar polêmica. Até o Ministério de Antiguidades do Egito decidiu se manifestar oficialmente, ressaltando que a rainha tinha "pele branca e traços helênicos", já que descendia principalmente de nobres da Macedônia, entre os quais um general de Alexandre, o Grande.

Do ponto de vista puramente factual, a observação do ministério me parece correta —embora não saibamos com certeza quem era a mãe de Cleópatra. Ela pode ter sido uma dama da dinastia macedônica, também chamada Cleópatra, ou alguém sem parentesco com o pai dela, Ptolomeu 12. (Bem-vindos à história da Antiguidade, onde esse tipo de incerteza é uma praga mesmo no caso dos personagens mais bem documentados.) Nesse segundo caso, poderia até ser de origem egípcia mesmo, embora os soberanos ptolomaicos em geral esnobassem seus súditos nativos.

Dito isso, porém, creio que é mais interessante e produtivo mudar um pouco o foco, deixando de lado a Cleópatra "pessoa física". Afinal de contas, ela e seus ancestrais diretos (ao menos os da linhagem masculina) são só a cereja do bolo nos 3.000 anos de história do Egito antigo —a rainha, inclusive, está mais próxima de você e eu, nessa linha do tempo, do que dos faraós das pirâmides.

Cena da primeira temporada da série Cleópatra, da Netflix, mostrando o rosto da rainha com a coroa
Cena da primeira temporada da série Rainha Cleópatra, da Netflix - Netflix/Divulgação

Ocorre que a controvérsia é a janela perfeita para abordar como as nossas ideias de "raça" são muito recentes e arbitrárias, e como o mundo real costuma lançá-las por terra.

Primeiro, eu desafio qualquer um a demonstrar que os habitantes do Mediterrâneo antigo dividiam a humanidade em raças baseadas na cor de pele, montando dois grandes blocos de "brancos" e "negros". Há alguns indícios de que essas caixinhas classificatórias tenham começado a tomar forma na Idade Média, mas elas só ganham projeção global mesmo do século 16 em diante.

E nunca é demais lembrar que, para muitos europeus e norte-americanos, povos como italianos, gregos e judeus não mereciam o rótulo de "brancos" até uns 150 anos atrás.

Fora isso, as populações humanas sempre foram geneticamente porosas. Havia um infinito "degradê" de miscigenação entre a África e o Mediterrâneo. E isso valia também dentro do próprio Egito — graças ao Nilo, que unia as populações marítimas em seu delta, no norte, ao interior do Sudão, no sul.

Em diferentes períodos da interminável história egípcia, houve faraós de origem semita, os chamados hicsos ("brancos", segundo a categorização moderna), e também vindos da Núbia ou Reino do Kush (sudaneses e "negros"). Ambas as influências, além de várias outras, foram incorporadas aos domínios faraônicos ao longo de milhares de anos.

Os estudos sobre o DNA dos antigos egípcios confirmam esse cenário complicado. Embora eles indiquem um parentesco bem mais próximo com povos do Oriente Médio, ainda assim há uma contribuição genética significativa de grupos ao sul do Saara ("negros", portanto), de até 15%. Nos egípcios atuais, essa contribuição sobe e pode ultrapassar os 20%. São números muito semelhantes, por exemplo, aos de muitos brasileiros que hoje se autodeclaram "pardos" nos censos nacionais.

E, é claro, vale ressaltar que todos esses números são médias populacionais, que não capturam o amplo espectro de diversidade individual no tempo e no espaço. Seja lá qual for a imagem de Cleópatra que funciona na sua cabeça, o certo é que o mundo dela era muito mais complicado do que uma simples oposição entre cores de pele.

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