Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

Fatos teimosos

Risco de retorno ao negacionismo ambiental, agora na esquerda, tem de ser combatido

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em certo sentido, escrever sobre ciência e ambiente durante o governo Bolsonaro era a coisa mais fácil do mundo. Diante da ignorância abissal e da sanha predatória despudorada, não havia grande dificuldade em apontar que 2 mais 2 dá 4. Infelizmente, as notícias da última semana sugerem que não falta gente no entorno do novo governo federal disposta a dizer que, veja bem, às vezes 2 mais 2 pode ser 5, por que não? Tudo em nome do "desenvolvimento" e da "soberania nacional", é claro.

Não me entenda mal: continua existindo um abismo de diferença entre o bolsonarismo e o governo Lula. Mas quem conhece a dimensão do desastre que foi a instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte sabe como são perigosos os apelos à "realpolitik" no caso da exploração petrolífera na foz do Amazonas, ou a possibilidade de que o ministério do Meio Ambiente e o dos Povos Indígenas tenham suas atribuições esvaziadas.

A ministra Marina Silva e o presidente Lula se encontram em almoço no Itamaraty - Ricardo Stuckert - 25.mai.23/Divulgação

A dificuldade em rebater o discurso do "veja bem" desenvolvimentista, que nunca deixou de ser bastante popular mesmo na esquerda do espectro político, é que ele parece razoável e moderado, especialmente se o interlocutor não tem uma noção clara do tamanho do buraco civilizacional que já cavamos. E, claro, não ajuda em nada o fato de que o Congresso brasileiro está repleto de gente que representa os interesses de uma economia baseada na extração bruta de riquezas naturais —seja as do subsolo, seja a proteína de origem animal ou vegetal.

Tudo isso, sem dúvida, encurta a margem de manobra do governo Lula. Mas não pode se transformar em licença para que a vitória eleitoral do ano passado –contra o negacionismo científico e ambiental– dê lugar a uma nova e mais palatável versão desse mesmo negacionismo. Alguns fatos são inescapáveis, por mais que a conveniência política esperneie e faça birra.

É simplesmente mentira, por exemplo, afirmar que o Brasil ainda não teve sua chance de "poluir para se desenvolver", e que essa chance lhe está sendo negada por países desenvolvidos que lucraram com a devastação de seus ambientes. Quem começa com essa conversinha, neste ano de Nosso Senhor de 2023, é muito mal informado, ou desonesto, ou talvez ambas as coisas.

Quando consideramos tanto a queima de combustíveis fósseis quanto o que os especialistas chamam de "mudanças do uso da terra" –desmatamento, expansão agrícola e pecuária etc.–, o Brasil ocupa o quarto lugar entre as nações que mais emitiram gases-estufa, os causadores da emergência climática, de meados do século 19 até hoje. O país está atrás apenas de EUA, China e Rússia.

Isso significa (e não há como tergiversar a respeito sem virar um mentiroso) que o Brasil tem parcela importante nos desastres climáticos que já andam acontecendo, e nos piores que hão de vir mesmo na melhor das hipóteses. A rigor, não haveria justificativa para abrir um só poço de petróleo a mais no chão ou nas águas territoriais brasileiras.

O mesmo vale para o desmatamento e a demarcação de terras indígenas. Os que reclamam com alguma variante das frases "É muita terra pra pouco índio/Isso aí vai engessar a produção agrícola" o fazem confiando na falta de noção de escala do interlocutor, porque espaço, por aqui, continua sobrando, mesmo que não se derrube mais nem um só ipê-amarelo. Que o digam os nossos 140 milhões de hectares –ou mais de duas Franças– só de áreas degradadas, ou seja, quase não aproveitadas para atividades agropecuárias.

Ainda que, neste momento, seja politicamente inviável pautar os planos de desenvolvimento do país com base nesses fatos, o mínimo que se espera, em termos de responsabilidade histórica e decência básica, é não negá-los.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.