Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu febre maculosa

A teia das doenças infecciosas

Surto de febre maculosa ajuda a entender como doenças infecciosas podem conectar diferentes espécies numa só teia

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A bela reportagem do colega Claudinei Queiroz sobre a relação entre mudanças ambientais no território paulista e o atual surto de febre maculosa na região de Campinas é uma das inspirações para a presente coluna. Em seu texto, ele mostra como o desmatamento, o extermínio de carnívoros de grande porte e o cultivo intensivo da cana e do milho perto de cursos d’água levou ao crescimento da população de capivaras e, ao que parece, a um risco aumentado da transmissão da doença por meio dos carrapatos que esses grandes roedores carregam.

Ao menos por enquanto, não há motivos para imaginar que esse processo acabe transformando a febre maculosa num problema generalizado de saúde pública. As chances de contato direto com os invertebrados que carregam a bactéria causadora da moléstia continuarão sendo relativamente muito baixas no caso de uma população já tão urbanizada quanto a nossa. E é de se esperar que médicos e pacientes fiquem mais alertas a sintomas e situações de risco, lançando mão de antibióticos rapidamente e evitando o pior.

Família de capivaras na raia olímpica da Universidade de São Paulo, na zona oeste de São Paulo
Família de capivaras na raia olímpica da Universidade de São Paulo, na zona oeste de São Paulo - Zanone Fraissat - 6.mai.19/Folhapress

Mesmo assim, as mortes trágicas dos últimos dias são casos extremos de um fenômeno muito mais amplo. Para tentar explicá-lo, vou me arriscar a fazer uma mistura de Charles Darwin e Ariano Suassuna (ainda que o saudoso dramaturgo paraibano não fosse um grande fã da teoria da evolução, infelizmente).

Em seu clássico "O Auto da Compadecida", Suassuna descreve a morte como a força que "iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados". Bem, os micro-organismos ou vírus que causam doenças infecciosas muitas vezes não matam suas vítimas — há até quem diga, de maneira um tanto simplista, que micróbio "esperto" é aquele que aprende a não matar seus hospedeiros. Mas faz sentido aplicar a eles a definição de Suassuna: sempre que possível, eles acabam funcionando como essa teia que conecta diferentes seres vivos num só rebanho, saltando de galho em galho pela Árvore da Vida.

E é aqui que Darwin sobe ao palco do nosso auto. Se pensarmos que micróbios — como a bactéria da febre maculosa — não passam de máquinas reprodutivas (o que, é claro, vale para tudo o que é vivo), a relação que desenvolvem com seus hospedeiros mais comuns, como os carrapatos e capivaras, envolve achar o equilíbrio entre continuar se reproduzindo e se espalhando, de um lado, e evitar que esse processo danifique suas vítimas a ponto de impedir que a multiplicação dos micróbios continue.

No entanto, às vezes calha de um organismo bem diferente dos hospedeiros usuais acabar se apresentando diante do micróbio ou vírus — um ser humano que passou pelo trecho de mato onde antes se deitara um bando de capivaras, digamos. Nesses casos, a linha que separa uma oportunidade evolutiva (a chance de colonizar com sucesso um novo tipo de organismo e obter ainda mais sucesso na reprodução) de um beco sem saída é tênue.

No caso da febre maculosa, o beco sem saída tem predominado. Para as bactérias dos carrapatos, somos mero desvio de rota, e isso talvez explique em parte a agressividade da doença no nosso organismo: não houve convivência suficiente para que a bactéria se adaptasse a passar mais tempo, com sintomas mais sutis, dentro do corpo de um ser humano.

Acontece que bagunçar a teia natural das relações de longo prazo entre causadores de doenças e hospedeiros é uma das receitas para gerar novas pandemias, a exemplo do que, ao que tudo indica, aconteceu no caso da Covid-19. Eis mais um argumento egoísta, mas pelo menos sensato, para refrear a destruição dos ambientes naturais que restam no país. Continuar com isso pode trazer visitantes ainda mais incômodos para o interior das nossas células, talvez bem mais hábeis na arte de se adaptar à nova casa.

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