Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Tempos ultramodernos

Mocinho deve abrir o app para seguir o vilão; parar um táxi é como pegar um touro

O vilão consegue fugir e entra numa limusine, dirigida por um dos seus fiéis empregados, que além de motorista também é segurança e, em princípio, tem uma cicatriz no rosto. Faz parte do fardamento e imagino que seja elemento importante das entrevistas de emprego.

"De fato, você tem a estatura física pretendida, e vê-se que é uma pessoa malvada, mas sem uma cicatriz sinistra no rosto não podemos empregá-lo nessa organização criminosa."

O mocinho chega logo a seguir, ainda vê o vilão partir, e pega um táxi. O nível de vida do mocinho é sempre bastante inferior ao do vilão, e nem assim ele tem um rebate de consciência sobre as opções de carreira que tomou. É burro, coitado.

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

A única consolação é que a sorte o vai protegendo, e costuma metê-lo em táxis cujo motorista é um homem bondoso, de certa idade, que já viu muito da vida e entende imediatamente que o mocinho é um mocinho, e por isso, quando o mocinho grita "Siga aquele carro!", ele diz "Oba, vamos lá!", e põe o pé na tábua.

Quando o táxi arranca, quase atropela um polícia, que inclusivamente entorna o café. Mas em vez de registrar os elementos do táxi para cassar a licença ao motorista, ele olha com certa benevolência para o carro, pois suspeita instintivamente que se trata de uma daquelas situações em que um mocinho acabou de entrar num táxi e gritar "Siga aquele carro!".

Isso era antigamente. Agora há menos táxis, porque chamar um Uber é, segundo dizem, mais prático, mais rápido e mais barato. O mocinho deve, então, abrir a app —coisa que parece, imediatamente, indigna de mocinho. Parar um táxi é como pegar um touro, domar uma besta. O mocinho salta para a estrada e dá uma ordem, máquina e homem submetem-se a ela, parte da selva para ao seu comando.

Abrir uma app é uma operação informática. O Uber chega e o mocinho grita: "Siga aquele carro!". O motorista diz: "Como assim? O percurso é predeterminado. Não introduziu o endereço de destino?". O mocinho: "Isso não interessa agora. Siga aquele carro!". Motorista: "Antes de mais nada, a temperatura está boa?". Mocinho: "Sim. Siga aquele carro!". Motorista: "Deseja água?".

E entretanto o vilão teve tempo de chegar ao seu esconderijo subterrâneo, acionar o botão que faz disparar os mísseis e desencadear um holocausto nuclear que vai aniquilar três quartos da população do planeta. Antes de morrer, consumido pelas radiações, o mocinho ainda tem tempo de ouvir: "Essa estação de rádio é do seu agrado?".

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