Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Caras baratas

Tolero a ingestão de insetos, mas não concebo propor a amigos uma baratada

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado numa monstruosa feijoada.

Tenho lido muitos artigos segundo os quais vamos passar a comer insetos, e isso preocupa-me um pouco. Dizem que a escassez de recursos vai fazer com que a gente não possa mais comer vegetais nem os tradicionais animais saborosos, como galinhas, vacas ou porcos. Teremos de comer insetos. 

Como sempre, o meu maior receio é o que isso pode fazer à linguagem. Comer insetos não me atemoriza. Já tem acontecido, sobretudo quando ando de moto. Mas conversar sobre insetos incomoda-me. 

Creio que nós, falantes de português, gostamos ainda mais de falar sobre comida do que de comer.

Enquanto almoçamos, vamos recordando antigos almoços e projetando futuros jantares. Não vejo gente que fala outras línguas a fazer o mesmo. Escolhemos palavras que diminuem carinhosamente a comida ou a aumentam com entusiasmo. Umas vezes apetece-nos um cabritinho, outras vezes convidamos alguém para uma bacalhauzada. 

Ora, eu sou capaz de tolerar a ingestão, em caso de necessidade, de moscas e baratas, mas não concebo a hipótese de sonhar com uma mosquinha, ou de propor a um grupo de amigos uma baratada. 

É esse o problema principal. Eu sou do tempo em que a gente dizia “tem um bicho na minha alface”, e não “garçom, tem uma alface no meu bicho”. 

Que graça tem uma personagem de Kafka acordar transformada em comida? Não gera inquietação nenhuma. Talvez passe a gerar apetite. “Sua cabeça de tipo opistógnata está com ótimo aspecto, Gregor.” 

A antiga frase “está uma barata na cozinha” passa a ser equivalente à declaração “está uma lagosta na cozinha”. 

Não sei se estou preparado. E o que quer Deus quando lança sobre o Egito uma praga de gafanhotos? Castigar o Faraó pelo aprisionamento dos hebreus ou premiá-lo com um delicioso banquete? Deixamos de saber. 

A poeta portuguesa Adília Lopes tem um livro chamado “Caras Baratas”. Sempre pensei que era o início de uma carta aos insetos. Agora parece mais um comentário sobre uma refeição num restaurante gourmet. O pior de comer insetos é que a língua perde o sabor.

Ilustração
Luiza Pannunzio

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