Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado numa monstruosa feijoada.
Tenho lido muitos artigos segundo os quais vamos passar a comer insetos, e isso preocupa-me um pouco. Dizem que a escassez de recursos vai fazer com que a gente não possa mais comer vegetais nem os tradicionais animais saborosos, como galinhas, vacas ou porcos. Teremos de comer insetos.
Como sempre, o meu maior receio é o que isso pode fazer à linguagem. Comer insetos não me atemoriza. Já tem acontecido, sobretudo quando ando de moto. Mas conversar sobre insetos incomoda-me.
Creio que nós, falantes de português, gostamos ainda mais de falar sobre comida do que de comer.
Enquanto almoçamos, vamos recordando antigos almoços e projetando futuros jantares. Não vejo gente que fala outras línguas a fazer o mesmo. Escolhemos palavras que diminuem carinhosamente a comida ou a aumentam com entusiasmo. Umas vezes apetece-nos um cabritinho, outras vezes convidamos alguém para uma bacalhauzada.
Ora, eu sou capaz de tolerar a ingestão, em caso de necessidade, de moscas e baratas, mas não concebo a hipótese de sonhar com uma mosquinha, ou de propor a um grupo de amigos uma baratada.
É esse o problema principal. Eu sou do tempo em que a gente dizia “tem um bicho na minha alface”, e não “garçom, tem uma alface no meu bicho”.
Que graça tem uma personagem de Kafka acordar transformada em comida? Não gera inquietação nenhuma. Talvez passe a gerar apetite. “Sua cabeça de tipo opistógnata está com ótimo aspecto, Gregor.”
A antiga frase “está uma barata na cozinha” passa a ser equivalente à declaração “está uma lagosta na cozinha”.
Não sei se estou preparado. E o que quer Deus quando lança sobre o Egito uma praga de gafanhotos? Castigar o Faraó pelo aprisionamento dos hebreus ou premiá-lo com um delicioso banquete? Deixamos de saber.
A poeta portuguesa Adília Lopes tem um livro chamado “Caras Baratas”. Sempre pensei que era o início de uma carta aos insetos. Agora parece mais um comentário sobre uma refeição num restaurante gourmet. O pior de comer insetos é que a língua perde o sabor.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.