Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Antes, a verdade não era algo que se possuísse; hoje cada um tem a sua própria

O cavernícola não precisa sair da caverna, tem de entrar cada vez mais dentro de si, do seu Instagram, do seu Twitter

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não sei quando aconteceu mas é óbvio que, há não muitos anos, a verdade foi privatizada. Todo o mundo tem a sua verdade. Antigamente, a verdade não era coisa que se possuísse. Era possível procurar a verdade ou até estar convencido de saber a verdade. Mas ninguém a tinha.

Agora cada pessoa tem a sua verdade pessoal. Que difere da verdade dos outros, igualmente portadores das suas verdades.

No meu tempo, a este tipo de verdade chamava-se opinião. Mas, provavelmente por terem feito um trabalho tão competente, as opiniões foram promovidas. Promovidas a verdade.

No desenho de Luiza Pannunzio um homem branco vestindo shorts verde, camiseta amarela, meias e tênis - está deitado numa caverna, aparando sua própria cabeça, mão sobre a testa. Parece tristemente confortável. Abaixo dessa imagem a frase: minha verdade.
Ilustraão de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira - Luiza Pannunzio

Isso operou uma mudança epistemológica clara. Na alegoria da caverna, se bem se lembram, as pessoas estavam acorrentadas e voltadas para a parede. Porque Platão até a refletir sobre a natureza do conhecimento sabia ser kinky. Não admira o seu sucesso no mundo da filosofia, normalmente frequentado por senhores que nunca viram uma mulher nua. Mas as pessoas que viviam na caverna não olhavam diretamente para as coisas: viam apenas as suas sombras, refletidas na parede, e tomavam-nas pela realidade.

No entanto, o verdadeiro mundo real estava fora da caverna. Era preciso libertar-se das correntes e sair da caverna para conhecer a realidade, sobre a qual a verdade brilhava.

Ora, neste momento creio que é possível formular uma hipótese alternativa —a que chamei alegoria do cavernícola.

Cada cavernícola está convencido de que tem a verdade acorrentada dentro de si. Como é próprio da verdade, ela brilha, e por isso o cavernícola refulge, emanando uma luz que encandeia, e nos faz ver pior.

Quanto maior o número de cavernícolas, mais luzes que cegam, confusão, menos compreensão da realidade. Em vez de haver uma verdade a brilhar do lado de fora, há inúmeras verdades a brilhar do lado de dentro.

O cavernícola não precisa sair da caverna, tem de entrar cada vez mais dentro de si, do seu Instagram, do seu Facebook, do seu Twitter. E todas essas plataformas cintilam —oh, se cintilam— com a sua verdade. Claro que podem achar que esta minha teoria é estúpida, mas estarão enganados. Porque, adivinhem, é a minha verdade.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.