Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Na Black Friday, consumidores competem em homenagem a Jesus

Se duvidar, messias expulsou comerciantes porque não estavam vendendo produtos com descontos interessantes

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Adotando mais uma vez a estratégia vencedora de instituir efemérides em estrangeiro, os estabelecimentos comerciais preparam-se para celebrar a Black Friday. Em português, Sexta-feira Negra não soa tão bem.

E, no entanto, a formulação portuguesa consegue descrever melhor o espírito da data. Mais uma vitória para a nossa língua, novamente superior às outras em termos de expressividade e precisão.

Na nossa formulação ressoa a lembrança da peste, que é importante para prevenir os ingênuos em relação ao que os espera. Vai haver muito contato físico com gente suada e furiosa, pode haver feridas abertas e transmissão de vírus.

No desenho de Luiza Pannunzio sete caixas grandes retangulares são disputadas e carregadas de forma desorganizada por pessoas diversas imersas num fundo preto.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira - Luiza Pannunzio

Está lá o negrume que alerta para a amargura gerada pela disputa de produtos, que avilta mesmo quando se ganha. Os consumidores entram nas lojas e, marcando o início da época de compras natalinas, arranham-se uns aos outros para chegar primeiro aos bens em promoção, numa linda homenagem ao nascimento do messias.

É verdade que Jesus expulsou os vendilhões do templo, mas é provável que o tenha feito apenas porque aqueles comerciantes não estavam a vender produtos com descontos interessantes.

Um dos aspectos mais intrigantes da Black Friday é que nenhuma loja se tenha lembrado ainda de construir uma tribuna na qual um imperador romano faz o sinal de polegar para cima ou para baixo, conforme o consumidor tenha ou não conseguido resgatar um LCD com 30% de desconto das mãos de outro.

E a expressão Sexta-feira Negra também contém uma referência sutil à obscuridade da cerimônia, seja porque umas vezes as lojas oferecem 50% de desconto sobre os 50% de aumento que levaram a cabo na véspera (a chamada Quinta-feira Incolor), seja porque outras se limitam a escrever a palavra "desconto" na etiqueta, sem retirar nada ao preço —uma operação de marketing que é também uma interessante lição de filosofia da linguagem.

A palavra desconto é capaz de seduzir consumidores sozinha. O desconto propriamente dito não precisa de existir. A coisa mais valiosa da Black Friday são as etiquetas que dizem "desconto". Os comerciantes deviam vendê-las. Com desconto, evidentemente.

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