Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Por que só a ironia pode ser a única figura de estilo considerada ameaçadora?

Meios de comunicação têm a nova e higiênica prática de avisar indefesos a respeito do uso desse expediente literário

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Amigos chamaram a minha atenção para uma nova e higiênica prática de alguns meios de comunicação, levada a cabo com a admirável intenção de proteger as pessoas indefesas contra os malefícios do discurso não literal.

Como eu estava com dificuldade em acreditar, enviaram-me algumas provas.

Por exemplo, um post no Instagram do canal GNT.

Dizia assim: "Nossa querida Blogueirinha do Fim do Mundo estranhou a atenção que personalidades pretas têm recebido nos últimos tempos e protesta pela minoria branca".

E por baixo vinha a legenda piedosa, entre conspícuos asteriscos: "*Atenção, este vídeo contém ironia*".

No desenho de Luiza Pannunzio 4 mãos apontam em direções às palavras que formam a frase: "Atenção: não parece, mas aqui contém ironia!" Três delas com o dedo indicador e a última com o dedo do meio.
Ilustração para coluna de Ricardo Araújo Pereira - Luiza Pannunzio

Que sorte dos espectadores. Antigamente eles eram expostos a um vídeo irônico completamente desprevenidos. Tinham de ver o vídeo, avaliar a intenção de quem intervinha nele e tirar conclusões —tudo isso usando o próprio cérebro, arriscando exaustão e dores de cabeça.

Agora podem assistir ao vídeo com tranquilidade.

A minha dúvida é a seguinte: bastará uma mensagem desse tipo, semelhante à das embalagens que nos informam que determinado produto contém glúten? Não será melhor um aviso igual ao do tabaco, dizendo: "A ironia prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam. Deixe já"?

E por que distinguir apenas a ironia com o privilégio de ser precedida de avisos?

Outras figuras de estilo também podem ser igualmente ameaçadoras.

(*Atenção, a próxima frase contém uma aliteração.*) A tal tática talvez tape os olhos a perigos maiores. Que sentido faz avisar para a ironia mas não alertar para estratégias oratórias que repetem o som ta -ta-ta-ta, tão parecido com o da metralhadora?

(*A próxima frase contém uma comparação.*) É como estar numa pocilga e avisar que alguém cuspiu para o chão.

(*As próximas duas frases contêm uma anadiplose.*) É preciso ter cuidado. Cuidado com todas as figuras de estilo, e não apenas com uma.

(*A próxima frase contém um zeugma.*) Os autores do aviso estão preocupados com uma figura de estilo; eu, com todas.

(*A próxima frase contém ironia. Avance por sua conta e risco.*) Somente quando estivermos prevenidos para todo o discurso não literal poderemos comunicar em segurança, sem medo dos graves prejuízos que ele pode causar.

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