Amigos chamaram a minha atenção para uma nova e higiênica prática de alguns meios de comunicação, levada a cabo com a admirável intenção de proteger as pessoas indefesas contra os malefícios do discurso não literal.
Como eu estava com dificuldade em acreditar, enviaram-me algumas provas.
Por exemplo, um post no Instagram do canal GNT.
Dizia assim: "Nossa querida Blogueirinha do Fim do Mundo estranhou a atenção que personalidades pretas têm recebido nos últimos tempos e protesta pela minoria branca".
E por baixo vinha a legenda piedosa, entre conspícuos asteriscos: "*Atenção, este vídeo contém ironia*".
Que sorte dos espectadores. Antigamente eles eram expostos a um vídeo irônico completamente desprevenidos. Tinham de ver o vídeo, avaliar a intenção de quem intervinha nele e tirar conclusões —tudo isso usando o próprio cérebro, arriscando exaustão e dores de cabeça.
Agora podem assistir ao vídeo com tranquilidade.
A minha dúvida é a seguinte: bastará uma mensagem desse tipo, semelhante à das embalagens que nos informam que determinado produto contém glúten? Não será melhor um aviso igual ao do tabaco, dizendo: "A ironia prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam. Deixe já"?
E por que distinguir apenas a ironia com o privilégio de ser precedida de avisos?
Outras figuras de estilo também podem ser igualmente ameaçadoras.
(*Atenção, a próxima frase contém uma aliteração.*) A tal tática talvez tape os olhos a perigos maiores. Que sentido faz avisar para a ironia mas não alertar para estratégias oratórias que repetem o som ta -ta-ta-ta, tão parecido com o da metralhadora?
(*A próxima frase contém uma comparação.*) É como estar numa pocilga e avisar que alguém cuspiu para o chão.
(*As próximas duas frases contêm uma anadiplose.*) É preciso ter cuidado. Cuidado com todas as figuras de estilo, e não apenas com uma.
(*A próxima frase contém um zeugma.*) Os autores do aviso estão preocupados com uma figura de estilo; eu, com todas.
(*A próxima frase contém ironia. Avance por sua conta e risco.*) Somente quando estivermos prevenidos para todo o discurso não literal poderemos comunicar em segurança, sem medo dos graves prejuízos que ele pode causar.
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