Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Quando se imita alguém, o imitado está envolvido na crítica a si mesmo

A imitação é mais perverso que examinar criticamente um objeto e desaparelhar seus principais elementos a partir de fora

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Em 1938, o ator Douglas Fairbanks estava justificadamente perplexo. Disse ele: "É uma das ocorrências mais inesperadas da história da civilização: que o ser mais maléfico do mundo e o maior comediante sejam parecidos".

De fato, Hitler e Chaplin eram parecidos. É importante notar, no entanto, que Chaplin já era famoso —provavelmente, a pessoa mais famosa do planeta— quando o mundo teve a infelicidade de conhecer Hitler. O Führer não se deixou intimidar pela semelhança. Podia ter rapado o bigodinho, ou deixado crescer um bigodão. Não, não. Optou por manter aquele bigode, que era simultaneamente muito popular e muito raro.

Tirando Chaplin e Hitler, quem mais o usava? Por isso, pode dizer-se que, em "O Grande Ditador", Chaplin não estava a imitar Hitler, ou melhor, estava a imitar Hitler, que o estava a imitar a ele. Ou seja, Chaplin estava a imitar-se a si mesmo.

Ora, quando se imita alguém, o alvo da imitação é convocado para participar na sua própria destruição. É possível examinar criticamente um objeto e desaparelhar seus principais elementos a partir de fora, isto é, de um ponto de vista exterior ao objeto. O que a imitação faz é diferente —e mais perverso.

No desenho de luiza pannunzio Hitler e Chaplin estão retratados lado a lado. Hitler com sua tradicional farda, botas pretas e braço direito esticado em comprimento nazista. Já Chaplin usa fraque, chapéu, segura uma bengala de bambu com a mão esquerda e botas pretas. A palavra bigodes dá continuidade ao desenho no espaço. E são eles - os bigodes - que chamam mais atenção nestes dois personagens.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araujo Pereira de 12 de novembro de 2023 - Folhapress

Quando se imita alguém, o imitado está envolvido, contra a própria vontade, na crítica a si mesmo. Não está a ser analisado de longe: está, para todos os efeitos, presente, e esvaziado de qualquer poder.

Na imitação, o olhar humorístico faz mais do que pousar sobre o objeto retratado: invade-o, manobra-o como a uma marionete, mina-o por dentro.

Quem estava Chaplin a minar por dentro? Hitler ou ele mesmo? Esse jogo de espelhos é aflitivo, até porque comediantes e ditadores sanguinários partilham outra característica. Eles são ambos cruéis.

Uma vez, o roteirista Charles MacArthur foi consultar Chaplin. Qual a melhor maneira de filmar uma velhinha a escorregar numa casca de banana? Mostrar primeiro a velhinha, depois a casca, e o escorregão? Ou primeiro a casca, depois a velhinha, e o escorregão?

Chaplin respondeu: "Nenhuma dessas. Filma primeiro a velhinha, depois a casca, depois mostra a velhinha a evitar cuidadosamente a casca. E depois filma a velhinha a cair no buraco do esgoto".

Não há dúvida, é crueldade requintada. Mas só magoa velhinhas imaginárias —ou nem isso. Elas acabam por sair do buraco do esgoto ilesas. Até porque têm de cair no próximo.

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