Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Não aguento mais tanta saúde mental na minha vida e nas minhas telas

Já houve um tempo em que era tabu falar de saúde mental, mas agora todos discutem o assunto, incluindo os incompetentes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Dizem que o general inglês William Erskine, que tinha vindo para Portugal com o Exército inglês para nos ajudar na luta contra Napoleão, se atirou de uma janela em Lisboa. Não creio que a culpa tenha sido da cidade. É certo que o grande mérito que se costuma atribuir a Lisboa não é propriamente muito impressionante.

Julgo que é unânime, tanto entre portugueses como entre estrangeiros, que a melhor coisa que Lisboa tem é a luz. No entanto, o modo particular como o sol brilha sobre uma cidade dificilmente será motivo de orgulho. Mais: se a luz é o melhor, quer dizer que aquilo que ela ilumina não é especialmente digno de nota.

Por outro lado, contudo, é fácil simpatizar com Lisboa. Parece que, no terremoto de 1755, várias igrejas ficaram destruídas. Mas a rua dos lupanares, ao que dizem os historiadores —que, aliás, deviam dar mais atenção aos lupanares—, ficou intacta. Há que respeitar uma cidade em que isso acontece.

O certo é que, em 1813, indiferente à beleza da luz de Lisboa, William Erskine resolveu atirar-se de uma janela. E, segundo reza a lenda, as suas últimas palavras, já depois de se ter lançado, foram: "Ora bem, por que é que eu fiz isto?". Esta ideia, a última que Erskine teve, é muito fresca. "Por que é que eu fiz isto?", diz ele.

Não tentou imputar a outros a responsabilidade de uma opção que tomou. O responsável foi ele, e a última coisa que faz neste planeta é admiti-lo. Duzentos anos depois, não é essa a prática habitual —especialmente entre os famosos.

No desenho de LP um homem vestindo calça, camiseta, botina de amarrar e meias listradas está quase de costas ao leitor com a cabeça apoiada numa parede de tijolinhos à sua frente. Tal posição faz uma sombra dele mesmo. Aos seus pés, sobre um calçamento cinza - há duas palavras: saúde mental. Isso do lado esquerdo do desenho. Já do lado direito, num fundo preto, vemos um divã e uma luminária desenhados em branco
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 4 de fevereiro de 2024 - Folhapress

Um ator de Hollywood destrata a namorada. Quem é o responsável? Os seus demônios. Ele é um mero títere nas mãos cruéis de uma longa lista de traumas, desilusões e complexos que o manipulam para ser como é, completamente contra a sua vontade.

Já houve um tempo em que era tabu falar de saúde mental —o que, obviamente, estava errado. Mas agora todo mundo fala de saúde mental, mesmo quem não tem a menor competência. Estrelas de cinema encomendam aos seus agentes um comunicado sobre a sua luta contra a ansiedade. Em maior ou menor grau, todo mundo luta contra a ansiedade. Mas a ansiedade das estrelas é, claro, maior do que a nossa.

Os comuns mortais não fazem ideia da pressão que a vida das estrelas exerce sobre elas. Ser rico e famoso é uma cruz que, felizmente, nós não temos que carregar diariamente. As conversas que as pacientes idosas costumavam ter na sala de espera do médico, em que cada uma pretendia superiorizar-se às outras com a sua maleita física, são as mesmas que decorrem agora no Instagram, mas sobre maleitas mentais. É algo que, confesso, tem prejudicado a minha saúde mental.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.