Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Rodrigo Tavares

Como a China está criando super-artistas, escritores, músicos e cineastas

Cientista desenvolveu plataforma para criar super-humanos e democratizar criação artística

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"Don’t be afraid, it’s beautiful" [não tenham medo, é belo], diz com um sorriso sapeca o professor chinês Yike Guo ao apresentar a primeira plataforma de criação de arte feita por inteligência artificial (IA). Não é um sistema de regeneração de um número ilimitado de obras de arte já criadas por humanos (uma espécie de ChatGPT da música ou da pintura), mas uma plataforma onde as máquinas co-criam conscientemente arte. A apresentação foi feita na semana passada em Hong Kong a uma plateia de 30 líderes globais do Fórum Econômico Mundial, durante um curso de especialização em IA na Hong Kong University of Science and Technology (HKUST).

"Quanto tempo levará para que a arte que consumimos regularmente passe a ser criada com a intervenção de máquinas?", pergunta alguém na plateia. "Cinco anos", responde o professor catedrático de ciências da computação e diretor do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de IA Generativa de Hong Kong. "Mas não haverá uma substituição de artistas por máquinas, mas uma co-criação de algo único, belo e pessoal."

Yike Guo e a sua equipe na HKUST estão desenvolvendo aquilo que designam como uma "plataforma tecnológica de simbiose criativa". Representa uma fusão entre máquinas e seres humanos que passam a se caracterizar como um só organismo criativo. A plataforma fornecerá conteúdo artístico ilimitado para humanos, incluindo um repositório de dados de arte e um sistema de algoritmo criativo de inteligência artificial com o objetivo de inaugurar uma nova era em tecnologia artística.

A plataforma de realidade estendida (XR) imersiva e interativa captura dados humanos durante o processo de criação e apreciação artística, que inclui os dados cognitivos, emotivos e fisiológicos tanto dos artistas quanto do público, como ondas cerebrais, temperatura corporal e frequência cardíaca, marcha e movimentos, entre outros. Mapeia-se, assim, de forma algorítmica. a experiência humana, tanto o que se sente quando se cria quanto o que se sente quando se é tocado pelo que é criado.

Segundo ele, o nível de apuração é muito superior ao autodiagnóstico feito por humanos de si próprios. O "gostar" ou "não gostar" de uma obra criada sai do nível do abstrato, do aleatório ou do intuitivo e passa a estar detalhadamente registrado em nível matemático. As diferenças do que sente um violista ao tocar na Filarmônica de Viena ou na Filarmônica de Berlin, imperceptíveis a um humano sentado na audiência, são registradas pelas máquinas. Além dos músicos, todos os tipos de artistas são mapeáveis: escritores, pintores, bailarinos, cineastas, promete o professor chinês. Será possível criar modelos individuais.

Depois, a plataforma converte esses dados em descritores de cognição, emoções e padrões comportamentais. Os pesquisadores associam e vinculam as obras de arte aos descritores para construir um repositório de dados abrangente e extenso para treinamento de modelos de inteligência artificial. É o que permite que as máquinas aprendam a estética humana e criem obras pioneiras, em vez de simplesmente imitarem a arte criada por humanos.

Na apresentação, Yike Guo detalhou a ciência por detrás da criação artística em imagens/vídeos, áudio, movimento e texto. E deu inúmeros exemplos do mundo que está sendo preparado no seu laboratório. Segundo ele, a intenção não é criar uma máquina que passe o Teste de Turing da arte. Mas que seja muito melhor do que um humano artista. Nos anos 1950, o cientista da computação britânico Alan Turing (1912-1954) propôs um teste para determinar se um computador pode pensar ou não. Se uma pessoa, ao obter respostas de um humano e de uma máquina, não conseguir distingui-las, poder-se-á concluir que a máquina é inteligente. Mas Guo não quer que as suas máquinas criem arte indistinguível da dos seres humanos. Imitar o talento humano não é a sua meta. O objetivo é criar uma nova experiência de criação artística. "As máquinas são melhores do que artistas humanos", remata.

Mas, em termos práticos, o que estão desenvolvendo Yike Guo e a sua equipe?

O pesquisador de Hong Kong Yike Guo
O pesquisador de Hong Kong Yike Guo - Reprodução

A plataforma criou o primeiro sistema duplo de canto digital do mundo. Após modelar a estética, emoções e técnica de um número muito extenso de cantores (incluindo de alguns célebres, como Céline Dion), o sistema permite que qualquer pessoa possa atingir o mesmo nível de qualidade no canto.

Funciona assim: com uma mera gravação de 100 segundos da minha voz, eu posso cantar com a mesma qualidade estética, emotiva e técnica da Céline Dion, atingindo o mesmo impacto sensorial no público que me escuta, mas usando a minha própria língua e com os meus próprios marcadores linguísticos (timbre, extensão vocal, estilo de canto etc.). Qualquer um pode tornar-se um cantor profissional.

Essa fusão entre máquina e humano cria uma identidade artística própria que pode ser legalmente protegida e monetizada ("my voice, my IP"). Como a voz de entrada é diferente, o canto de saída também é distinto e personalizado. Essa experiência pode também ganhar uma dimensão visual, porque as minhas características físicas e expressões faciais, exclusivamente minhas, podem também ser registradas e manipuladas para criar uma representação física única.

A partir de mim próprio, eu posso ser quem eu quiser, ainda que numa versão artificial. A partir de mim próprio, eu posso ser melhor do que eu próprio. O sistema representa um avanço significativo relativamente a softwares de imitação de voz geradas por inteligência artificial, como os que surgiram recentemente nos EUA com as vozes de Travis Scott, 21 Savage ou Drake.

A plataforma apresenta também a primeira e maior base de dados de trajetória de labanotação 3D do mundo. Rudolf Laban (1879-1958) criou um sistema de anotação do movimento (Labanotação) propondo a observação de quatro pontos constituintes do movimento: Corpo, Esforço, Planos e Espaço. Com isso, a máquina utiliza os inputs que recebe –texto, vídeo ou imagens, música ou sinais fisiológicos– para produzir movimentos em 3D. Qualquer um pode tornar-se um coreógrafo profissional. A máquina criará bailarinos e movimentos que expressam 100% a sensibilidade física e emocional dos coreógrafos. Yike Guo cunhou essa frente como "MotionGPT" e exemplificou-a à audiência com Bach: os bailarinos dançaram automaticamente de acordo com as expetativas técnicas, as expressões fisiológicas e a sensibilidade do criador humano. Nenhum bailarino humano seria capaz de reproduzir tal exatidão.

Ao juntar as capacidades de geração de texto literário, música e movimento, Yike Guo tem também como objetivo criar filmes, ou o que chama de AI Movie (AIM) –"um projeto altamente ambicioso". A plataforma criará roteiros (enredo, gráfico de personagens, diálogo, ação, emoção), geração de cenas (imagens estáticas, cenas dinâmicas, iluminação dinâmica, movimento de câmera), geração de objetos (texturas, estruturas e interações) e geração de personagens (face, corpo, roupa). Como resultado, a IA gerará diálogos, movimentos de representação, emoções e trilha sonora. Qualquer um pode tornar-se um cineasta ou ator profissional. Para criar o AIM, o poder computacional necessário é cerca de 5% do da OpenAI, a criadora do ChatGPT. "Nada de mais", diz Guo. Quando concluídas as primeiras modelagens com algoritmos, criar um filme "levará pouco tempo".

Em 2024, as máquinas da HKUST irão fazer uma turnê na China, Áustria e no Reino Unido com uma reinvenção das "Quatro Estações" de Vivaldi. Bailarinos de IA e bailarinos humanos irão dançar ao mesmo tempo ao vivo, um cineasta de IA irá criar, em tempo real, um filme imersivo para a performance ao vivo, cantores de IA irão cantar letras de música geradas automaticamente a partir dos desejos do público e um maestro de IA irá apresentar novos arranjos para adaptar a peça barroca ao século 21 através de uma criação simbiótica entre a máquina e a Orquestra Sinfônica do Conservatório Central de Música da China. Tudo isso será criado através da leitura emocional e fisiológica do público para que o resultado final possa ser uma representação artística das mais altas expectativas e do perfil individual médio de quem está sentado no auditório. Ou seja, todos os espetáculos serão únicos.

Os livros que leremos escrever-se-ão automaticamente a partir da coleta em tempo real das sensações, emoções e expectativas do leitor e/ou do escritor. Se assim o desejarmos, todas as obras literárias poderão ser obras supremas de arte, uma mescla do melhor nível de Machado, Tolstói e Camus. Todas elas serão integralmente customizadas de acordo com os nossos interesses e sensibilidade. Não haverá dois livros iguais. O mesmo acontecerá nos domínios da música, pintura, cinema, ópera. Essas experiências únicas serão a nova definição de obra de arte –individual e comercializável. Como consumidor, eu poderei comprar um livro feito especificamente para/com a Taylor Swift e uma música feita para/com a Margaret Atwood. Será uma forma única de conhecer ao máximo detalhe a sensibilidade de ambas.

Ao ser questionado sobre as fronteiras éticas do seu trabalho e sobre as motivações em querer invadir a única área em que, potencialmente, só humanos conseguem ser humanos –as artes–, Guo argumenta que a sua pesquisa representa uma revolução que transformará radicalmente as indústrias criativas e culturais. "Eu não quero matar os artistas, eu quero que toda a gente se torne um artista", diz eufemisticamente. Reforça: "Eu não quero que a ciência entre no domínio da arte e a destrua, não quero que os cientistas se tornem artistas, mas quero que os artistas abracem a ciência e a tecnologia. Quando unirmos cientistas e artistas potenciaremos ao máximo a condição humana".

No seu entendimento, a tecnologia é um ativador da criatividade humana, empurrando-a para patamares inalcançáveis por seres humanos em nível individual ou coletivo. A aplicação concreta do seu trabalho já foi batizada como "Super Artista de IA", "Mente Compartilhada Empática de IA" e "Ópera Simbiótica". Nessas três dimensões, a produção artística é feita por artistas, audiência e máquinas de uma forma harmoniosa, integrada e em tempo real.

A história é pródiga em tecnologias que tanto podem ser usadas de forma benéfica quanto destrutiva, como a energia nuclear, engenharia genética, drones ou reconhecimento facial. Para Guo poder levar a arte a novos patamares de criatividade, as atuais indústrias de cinema e entretenimento (mercado de US$ 95 bilhões), música (US$ 28 bilhões) ou artes (US$ 68 bilhões) terão que ser desfeitas e refeitas, com impactos dolorosos para os profissionais envolvidos. Consciente dessas ambivalências e dilemas, o professor chinês citou o físico J. Robert Oppenheimer três vezes em sua palestra.

Ainda que o seu trabalho tenha como objetivo criar livros, sinfonias, pinturas, coreografias ou filmes, todos esses conceitos antropomórficos, históricos e materiais precisariam ser redefinidos para serem utilizados num contexto de autoria compartilhada entre humanos e máquinas. Um livro co-escrito por uma máquina continua a ser um livro na versão original da palavra? A palavra "livro", do latim "líber", designa a matéria-prima para a fabricação do papel. A arte, como a definimos hoje, é a expressão da subjetividade exclusivamente humana. A pesquisa da HKUST também não diferencia quantidade de qualidade. Aumenta-se a potencialidade da criação à medida que oferece mais recursos. Mas entregar arte, arte de qualidade, é outra história.

A sua pesquisa em arte simbiótica já recebeu linhas de financiamento de 120 milhões de euros. A sua equipe inclui cientistas cognitivos, cientistas de IA e de dados, cientistas de mídia, especialistas em ética e em política artística, tanto chineses quanto pesquisadores afiliados a universidades ocidentais como Yale, Cambridge, Imperial College London e Kent. A Microsoft, Huawei e a Ópera de Hong Kong são parceiros. Yike Guo é reconhecido como um dos mais talentosos cientistas computacionais chineses.

Intuitivamente, esperaríamos que a IA só poderá criar arte se se apropriar de quantidades ilimitadas de obras artísticas já criadas por humanos para encontrar novos padrões e abordagens. É o que faz o ChatGPT ou Claude com texto ou o DALL-E-2, MidJourney, e Stable Diffusion com imagens. A um nível superficial, é isso que já está acontecendo no domínio das artes visuais e literárias. Milhões de imagens e milhares de livros estão sendo escritos por intermédio de IA, mesmo que alguns tribunais comecem a decidir que essas obras não poderão ser protegidas por direitos autorais porque não foram feitas por humanos. Necessariamente, essa apropriação feita pela IA leva a inúmeros questionamentos éticos e legais.

No dia seguinte à apresentação de Yike Guo, o criador de "Game of Thrones" e outros 16 autores processaram a OpenAI por "roubo sistemático e em larga escala" de direitos autorais. A empresa americana apoia-se, sem autorização legal, em um número ilimitado de obras autorais para produzir novas abordagens. Vários artistas têm manifestado as suas ansiedades relativamente à apropriação do seu espaço feita por inteligência artificial.

Se o casamento entre a arte e a IA só fosse possível dessa forma, então as máquinas só poderiam criar algo novo tendo como base um repositório de tudo aquilo que já foi criado. Não haveria espaço para a máquina ser uma futurista, uma pioneira, uma verdadeira experimentalista. O poder da criação estaria limitado às experiências do passado destacou a revista Science, comprometendo a própria definição de arte, como salientaram professores de Harvard.

Eventualmente, poderíamos também pensar imageticamente que as máquinas poderão, um dia, ser integralmente independentes dos seres humanos, alcançando capacidade artística própria. A um nível superficial é também isso que já está acontecendo. E já há muito tempo. Em 1952, o cientista computacional britânico Christopher Strachey criou um programa no computador Manchester Mark 1 que gera automaticamente poesia e cartas de amor.

Mas a pesquisa da Hong Kong University of Science and Technology reflete um nível mais avançado dos que as duas hipóteses anteriores: seres humanos e máquinas se fundirão para produzir arte. E o resultado dessa simbiose poderá ser melhor do que aquilo que algum artista já criou. A tecnologia permitirá que os artistas acedam a mais e melhores instrumentos de criatividade.

"Os humanos criam máquinas inteligentes e as máquinas inteligentes criam humanos ainda mais inteligentes. Os humanos estão sempre um passo à frente", concluiu Yike Guo.

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