Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

Viva e se mexendo

Dois títulos recentes da Folha mostram a língua a se reinventar diante de nossos olhos

Mulher lê a Folha
Mulher lê a Folha - Fabio Braga - 18.fev.2016/Folhapress

Dois títulos publicados recentemente pela Folha são boas ilustrações de como a norma culta de uma língua, aquela em que os jornais se expressam (ou deveriam se expressar), é uma paisagem que só os 
mais distraídos consideram imóvel.

O fato de se mexer bem devagar, como o ponteiro menor de um relógio, confere à língua uma ilusão de permanência e rigidez que está longe de corresponder aos remelexos excitantes —ou angustiantes, de um ponto de vista ultraconservador— que o olhar histórico revela.

“São Paulo cobra Dorival, mas opta por permanência”, lia-se na editoria de Esporte no dia 23 de fevereiro. Se até hoje o técnico vai mesmo permanecendo no cargo, o que sem dúvida dançou foi a regência clássica segundo a qual o clube poderia ter cobrado algo de (ou a) Dorival Júnior, objeto indireto, mas jamais cobrado o próprio Dorival, que não é dívida —embora muitos achassem que ele estava devendo.

Dois dias antes, em Poder, havia aparecido uma rebeldia semelhante de regência, ainda que com outro verbo: “Temer rebate Lula e nega que ação no Rio seja eleitoreira”. Seria um exagero dizer que os leitores imaginaram o atual presidente brandindo uma raquete de tênis para devolver o ex, como uma bolinha amarela, ao seu lado da quadra. Mas do ponto de vista da gramática clássica é mais ou menos isso que estava escrito.

Não conheço dicionário que abone uma construção em que o objeto direto de “rebater” seja a pessoa cuja crítica ou argumento se deseja refutar, contestar. Rebate-se o argumento, não seu autor. Como no caso de Dorival Júnior, prevaleceu a economia verbal —especialmente valiosa em títulos— na adoção de um atalho sintático com álibi na metonímia.

A verdade é que esses exemplos trazem construções tão comuns em nossa paisagem linguística dos últimos anos que pouca gente os estranha, ainda bem. Minha intenção aqui não é apontar erros. 
É quase o exato oposto disso.

A graça maior de observar a língua com olhar clínico é flagrar aquele momento em que uma nova configuração fica evidente na paisagem falsamente congelada. Quando já não se pode negar que o avanço do ponteiro pequeno, mesmo vagaroso, o levou a um novo ponto. 

Quando, enfim, deveria se acender um sinal amarelo nos gabinetes de gramáticos e dicionaristas, para que eles fiquem ligados e acolham em boa hora as mudanças que resistirem ao tempo e se firmarem no uso —pois há também os modismos passageiros e as simples batatadas, claro.

Algumas pessoas veem nesse tipo de postura um vale-tudo entrópico que, a longo ou nem tão longo prazo, decretará o apocalipse da língua. O alarmismo se funda no desconhecimento da história, 
no apego à tal ilusão de imobilidade.

Do século 13 até o início do 20, o verbo “namorar” só era aceito no português culto como intransitivo (“ela adora namorar”) ou transitivo direto (“Enzo está namorando Valentina”). Sua consagração como transitivo indireto (“Valentina namora com Enzo”) se deu de cem anos para cá. 

Os dicionários já aceitam a velha novidade, mas alguns patrulheiros ainda não se conformaram.

Compreensível: não é sempre que se conjugam estes dois prazeres dos chatos, policiar a língua e a 
vida amorosa dos outros.

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