Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Do futuro ao porvir

Sinônimo poético povoa o que está 'por vir' com nossos medos e desejos

Sinônimos perfeitos são como unicórnios: não existem. Troque negro por preto e um mundo de conotações se rearranjará em torno da palavra com a qual você só desejava, talvez, designar a mesma cor e nada mais. Mas tal inocência não está ao alcance da linguagem.

Quem acredita em sinônimos perfeitos deveria considerar o caso das palavras "futuro" e "porvir". Às vésperas de uma virada do calendário que, no Brasil, marca também um cavalo de pau político, as duas nomeiam cada uma a seu modo esse vasto território do ignorado.

A palavra "futuro" tem mais passado que "porvir": filha do latim "futurum", estreou no idioma no século 15. O sinônimo —imperfeito, mas sinônimo— que estava em seu porvir (século 16) se formou no português com aquela simplicidade literal que marca tantos achados da nossa língua.

Juntando a preposição "por" ao verbo "vir", o português quinhentista abriu as portas para uma tautologia ao mesmo tempo que criava uma alternativa concreta, pé no chão, a uma abstração derivada do latim. O que passou? O passado. O que está por vir? Ora, o porvir.

Se "porvir" nasceu simples, deixando para "futuro" o papel de palavra sofisticada, o devir da língua logo inverteu seus papéis. O porvir tornou-se o futuro poético, prenhe de símbolos e meio beletrista, enquanto o futuro é o porvir sensato, concreto.

Têm semelhanças, claro. Quando tentamos prever o futuro ou quando buscamos sondar o porvir, tudo é interrogação, tela escura onde projetamos probabilidades misturadas à fantasmagoria de nossos desejos, temores e crenças. Mas a primeira operação não se confunde com a segunda.

No caso do olhar sobre o futuro, predominam o cálculo das probabilidades, a ponderação das tendências, a montagem de cenários, o estudo do passado em busca de lições —numa palavra, a futurologia. 

Esta, se o futurólogo é bom, sempre inclui uma variável selvagem, a probabilidade de que todo aquele castelo de cartas venha abaixo ao primeiro sopro do acaso. Mas a construção do castelo não deixa de ser meticulosa.

Inquirir o porvir é outra história. Aqui recuam para o fundo da cena as séries estatísticas e os exemplos históricos, tudo o que de racional possa ter o ofício de pitonisas, videntes e economistas. O centro do palco é ocupado por nossos temores e desejos, nossos suores frios de medo e nossa adrenalina de antecipação. O porvir é o futuro, mas agora é pessoal.

Acho significativo que o maior feito literário da palavra "porvir", o de encerrar o poema "Adiamento", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, se dê num contexto semicômico de revolta do sujeito contra a tirania do tempo. 

Em resistência passivo-agressiva ao futuro, aquele que é provavelmente o maior hino à procrastinação da literatura universal diz: "Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã.../ Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,/ E assim será possível; mas hoje não.../ Não, hoje nada; hoje não posso".

Álvaro de Campos não é louco: acredita em causas e consequências. "Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;/ Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã..." Na imobilidade sonolenta do presente, intuímos seu sorriso irônico: "O porvir.../ Sim, o porvir...". 

 

O futuro imediato do colunista está traçado: saio de férias para voltar dia 31 de janeiro. A todos os leitores, meus votos de um feliz 2019.

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