Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Os neoprimitivos

Estaremos nos tornando bebezões mimados e intelectualmente preguiçosos?

Interagimos com robôs o dia inteiro, enchemos cinemas para ver filmes de super-herói e temos qualquer informação, inclusive as falsas, ao alcance dos dedos em segundos. Estaremos nos tornando bebezões mimados, flácidos no espírito e preguiçosos na mente?

O florescimento do neoprimitivismo parece indicar que sim. O neoprimitivo pode ter todos os defeitos acima, mas é um autoconfiante. Danem-se os fatos, ele sabe que os fatos disponíveis foram filtrados por um complô universal.

Complô de quem? Quem são seus inimigos? Aqui o neoprimitivo soa meio nebuloso, mas imagina algum cruzamento teratológico de Governo, Mídia e Ciência —com maiúsculas para realçar o modo como esses campos complexos se reduzem, em sua cabeça, ao vilanismo carnavalesco daquelas lagostas bípedes de espuma dos Power Rangers.

Cena de "Os Power Rangers" - Divulgação

O neoprimitivo se vê como uma vítima do sistema, de uma imensa conspiração. Felizmente, não é bobo, não cai mais nessa: escamas lhe foram tiradas dos olhos no dia em que leu a explicação de tudo no post de dois parágrafos daquele blog maneiro.

A terra é plana. Vacinas matam. A Folha e a Globo são comunistas. Hitler e Mussolini eram de esquerda. George Soros lidera a conspiração sino-comuno-judaico-ambiental-globalizante que já deixou a Europa de joelhos e ameaça destruir o mundo. Trump é a grande esperança branca.

O neoprimitivo era fã de RPG na adolescência e acha que basta vestir alguma carapuça para que o poder de seu intelecto se multiplique por um milhão. Ele é "contra" a ciência, "discorda" de Charles Darwin --com aspas porque, como é óbvio, as palavras "contra" e "discordar" representam neste caso atos formidáveis que o neoprimitivo seria incapaz até de imaginar.

Ele jura que está tudo dominado. Não porque não seja inteligente --é um erro associar neoprimitivismo com pouca capacidade intelectual—, mas porque é um viciado em cores chapadas, memes binários, slogans, simplificação exagerada. Ênfase no "exagerada".

Simplificar é imprescindível para darmos conta do mundo. Diante da complexidade insuportável do real, a linguagem trabalha com generalizações, categorizações, metonímias, saltos lógicos mais ou menos arriscados. A cognição é sempre a arte do possível.

A ideia simplificadora é atraente quando ordena o caos, permitindo derivar dela outras ideias funcionais e tomar boas decisões. Às vezes abusa um pouco: "Todos são iguais perante a lei". Sabemos que não são, que o mundo é mais complicado que isso, mas reconhecemos a importância do princípio. Às vezes abusa muito: "Todo homem é um estuprador".

Como saber quando a simplificação passa do ponto? O bom senso ajuda. Dizer, por exemplo, que o PT se enlameou, queimou o filme da esquerda e mereceu ser mandado para casa é exprimir com palavras simples uma opinião baseada em um conjunto de evidências.

Pode-se discordar da opinião, mas não impedir sua entrada no campo das ideias razoáveis: trata-se, no mínimo, de uma das simplificações possíveis para o tumulto da política brasileira nos últimos anos.

A simplificação se torna neoprimitiva quando o PT, mais que enlameado e queimado, vira uma lagosta japonesa a serviço de um imaginário "comunismo" tarado pela destruição da família brasileira por meio da "ideologia de gênero". Morte ao crustáceo!

A visão de mundo do neoprimitivo é infantilizada e cruel, como nos videogames. Não figura entre as mais indicadas para fazer um país.

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