Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

CPFs cancelados

Eufemismo burocrático-jocoso para 'bandidos executados' nos enche de vergonha

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Os registros online apontam para uma expressão com poucos anos de vida. Sua origem, tudo indica, é policial, mas coube ao jornalismo sensacionalista —e a seus equivalentes nas redes sociais— transformar em sucesso nacional a locução "CPFs cancelados".

Para quem não sabe, "CPF cancelado" é uma metonímia burocrático-jocosa que quer dizer "bandido (ou suspeito) executado sumariamente". Não foi gente que morreu, entende? Era um número --e foi deletado.

Trata-se de um eufemismo peculiar. Por definição, o eufemismo tem a conhecida missão de atenuar uma realidade feia ou bruta, tornando-a mais palatável.

Tributo pago à hipocrisia, sua função é civilizatória. Propõe tato, delicadeza: em vez de "fulano morreu", que tal "fulano nos deixou"? Nosso primeiro antepassado a dizer aos companheiros que daria um pulo ali na moita prestou um bom serviço à espécie.

Claro que o eufemismo também pode se prestar à enganação, à desconversa: "crescimento negativo" e seus congêneres solapam a inteligência coletiva. Mas ainda nesse caso a ideia é polir as quinas de uma ideia dura.

"CPF cancelado" faz algo diferente. A amenização que propõe se transforma em agravante pela via do sarcasmo. Não quer poupar, almofadar civilizadamente a sensibilidade do ouvinte. Quer espicaçá-la.

Sua lógica é anti-humanista. Declara a desumanização do inimigo com uma frieza burocrática que faz parecer caloroso o velho arsenal de metáforas de intolerância social reunido pela humanidade —ratos, piolhos, vermes etc.

Seu humor exige a aceitação de um pacto de desprezo incondicional pelos mortos em questão. Já não basta o velho "bem feito", achar que eles assinaram sua sentença de morte ao cair no crime —mas, afinal, que horror viver num país tão sangrento.

Não mais. O "CPF cancelado" é a comemoração tácita e serena, nem sequer eufórica, de um ato banal e desprovido da aura trágica que o justiçamento à moda antiga pudesse ter. Tão ilegal quanto aquele, consegue ser bem mais sinistro.

Puxar o gatilho é mais fácil quando se mata um cadastro, mas a força da expressão não se restringe a isso. Ao ouvinte que por qualquer motivo rejeitar seu gélido desdém pela vida humana, soa como uma agressão horrível --e isso também está em seus planos.

Vem daí a eficácia com que demarca os campos do "nós" e do "eles". Nós: os que queremos livrar a sociedade de bandidos, mesmo que ao arrepio do estado de direito e à custa de fomentar a bandidagem dos matadores de bandidos. Eles: os que amam bandidos, logo merecem ter seus CPFs cancelados também.

A expressão assinala um novo patamar na guerra que o Brasil trava há séculos contra o Brasil. Tendo por base uma desigualdade econômica de pesadelo, com escandalosas tinturas raciais, nossa violência aspira hoje à institucionalização do assassinato de indesejáveis.

No novo ambiente, absurdos parecem normais. O inacreditável governador fluminense se sente autorizado a propor, pimpão, que snipers mirem "na cabecinha". Os 80 tiros de fuzil disparados pelo Exército contra a família do músico Evaldo Rosa ecoaram pelo mundo por dias até que a primeira autoridade, pressionada, reconhecesse timidamente haver ali algo a lamentar.

A insegurança pública chegou a tal ponto, a sensação difusa de medo e desamparo é tão grande, que uma expressão como "CPFs cancelados" parece aceitável a muitos de nós. Não deveria parecer, mas parece. Nosso fracasso moral é retumbante.

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